Histórias dos Trabalhadores Técnicos da Fiocruz

Manguinhos de Muitas Memórias
Mas afinal, quem é o bem educado
Somente aquele que conhece o livro e lê
Ou também é alguém que foi versado
Na diferença entre o cabula e o aguerê?
 
Diga-me lá: quem é o dono do pensar
O bem formado na França, Alemanha
Ou a criança que aprende a despertar
A folha certa no canto da sassanha?
Eu quero Bach cruzando Pixinguinha
A sinfonia, o toque da avamunha
A Odisseia, o som do barravento
 
O Danúbio nos versos de Hölderlin
Oxalufan dançando o seu igbin
O bravum arrepiando o ser no tempo.
 
Soneto 32 de l.a.simas.

O TRABALHO DOS TÉCNICOS

No início do século XX, a divisão do trabalho em Manguinhos era pouco nítida. Os cientistas e seus auxiliares executavam juntos muitos procedimentos necessários para o andamento das pesquisas. Os auxiliares de laboratório, além da execução de tarefas que envolviam diversas técnicas laboratoriais, eram responsáveis ao mesmo tempo pela limpeza e arrumação dos laboratórios, das vidrarias, do conserto de gaiolas dos biotérios, da inoculação de soros nos cavalos e limpeza das cocheiras... Todo o tipo de trabalho manual era feito por eles. Desde os mais complexos, como a leitura de lâminas no microscópio, autópsias e preparação de meios de cultura, até os mais simples como a limpeza das fezes dos animais.

 

O relatório do Instituto Vacinogênico, que passou a funcionar em Manguinhos a partir de 1922, deixa evidente o compartilhamento de algumas funções entre os funcionários auxiliares e os médicos. 
veja mais sobre o Vacinogênico aqui
Documento sobre a integração do Vacinogênico ao IOC Cópia de registro de ofício encaminhado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores sobre a incorporação do Instituto Vacinogêncio Federal ao Instituto Oswaldo Cruz. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Novembro de 1926.
primeira página do relatório de atividades do Instituto Vacinogênico, de março de 1939. O documento descreve as atividades desempenhadas e compartilhadas de seus trabalhadores auxiliares e médicos Relatório de atividades do Instituto Vacinogênico, p.1. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Março de 1939
segunda página do relatório de atividades do Instituto Vacinogênico, de março de 1939. O documento descreve as atividades desempenhadas e compartilhadas de seus trabalhadores auxiliares e médicos Relatório de atividades do Instituto Vacinogênico, p. 2. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Março de 1939
Em algumas situações, os próprios auxiliares inventavam métodos e técnicas de trabalho para lidar com situações de periculosidade a que estavam submetidos, como, por exemplo, o trabalho com tifo exantemático. Não havia equipamentos de segurança e na hora do perigo, o cientista saía do laboratório:

 

E eu e este Cunha tínhamos uns cristalizadores de vidro. Uns frascos de vidro retangulares, onde nós colocávamos o cobaio, tinha um estrado de madeira. Colocávamos o cobaio em um tubo cheio de carrapato em cima desse cobaio. E tínhamos que tomar temperatura deste cobaio, duas vezes ao dia. Como é que íamos segurar esse cobaio? [...]Cheio de carrapato! Carrapato infestado com tifo exantemático. [...] Eu vou contar o que eu e Cunha fazíamos, a temperatura é a retal. No termômetro nós colocávamos graxa em volta do termômetro. E nos pulsos, um anel de graxa. Um pegava o cobaio e mantinha em cima do cristalizador. O outro, introduzia o termômetro no reto. Tomávamos a temperatura, introduzíamos o termômetro e as mãos no desinfetante. Carrapato que estava da graxa para baixo, ficava no desinfetante, no lisol, e o cobaio ficava ali. Mas isto foi engendrado por mim e pelo Cunha.[...] O médico, o médico, o médico, que era um alemão, chamado Paulo Regendanz, e que estagiava conosco, é que comandava a pesquisa. Mas neste momento ele saía do laboratório. Ficava eu e o Cunha. Estamos todos dois vivos. Mas trabalhávamos assim (Attillio Borriello, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita3, lado B)
clique aqui para saber mais sobre o Tifo Exantemático

INGRESSO

Operários das obras do Castelo. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor: J. Pinto
O ingresso dos auxiliares de laboratório no Instituto Oswaldo Cruz era atravessado por relações de pessoalidade que podiam ser de parentesco, amizade ou algum outro tipo de vínculo, tanto com pesquisadores do Instituto como com outros funcionários. Uma das formas de ingresso se deu pelo aproveitamento dos operários das obras do Castelo Mourisco. Significar a dignidade do ofício e, por consequência, do trabalhador, posando com os instrumentos e produtos do trabalho, fazia parte da iconografia da época, como mostram fotos das primeiras décadas do século 20, de trabalhadores de diversas categorias.

 

Na imagem, artífices da construção do Castelo. Cada um com uma especialidade e exibindo orgulhosos suas ferramentas de trabalho. Todos brancos, descendentes de imigrantes. No canto esquerdo, Basílio Aor. No canto direito, Fructuoso Grandara, contra-mestre. Após a morte de Basílio Aor, em 1919, Fructuoso Grandara, um espanhol da região da Galícia, continuou trabalhando em Manguinhos, cuidando da manutenção dos edifícios e de novas construções.
Saiba mais sobre as imagens do trabalho neste período histórico
Fotografia em preto e branco de um grupo de onze trabalhadores especializados que trabalharam nas obras do Castelo Mourisco. Em frente a eles, no chão, estão suas ferramentas de trabalho. Artífices da construção do Castelo Mourisco. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. 1905. Autor: J. Pinto
Operários da cavalariça. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: 1910. Autor: J. Pinto.
O trabalho infantil era comum nos primeiros anos da República. A moral do trabalho, associada à pobreza, justificava o afastamento do ócio e dos perigos da “vagabundagem”, e levou muitas crianças a ingressarem cedo no mundo do trabalho. É possível observar nesta imagem dos operários da Cavalariça várias crianças compondo o grupo de trabalhadores. Algumas sentadas no chão.

 

Nos tempos atuais, temos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que veda o trabalho para menores de 14 anos, exceto na condição de aprendiz. Dessa forma, a legislação proíbe que crianças e adolescentes trabalhem na construção civil e em outras atividades que ofereçam risco e que possam prejudicar o seu desenvolvimento, como acontecia naquele tempo. Além disso, o ECA garante, por exemplo, direitos à liberdade e à dignidade e proteção em casos de violência.

 

Como observamos, na prática, a aplicação dessa lei? Você já pensou sobre isso?
Detalhe de crianças operárias nas obras da Cavalariça. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. 1910. Autor: J. Pinto.
Alguns auxiliares que construíram certo prestígio na relação com os cientistas do Instituto conseguiram para seus familiares uma colocação em um posto de trabalho. Nestes casos, a ideologia do favor era utilizada em benefício próprio, agenciando sua própria trajetória e de seus parentes. Já os cientistas iniciavam suas carreiras no Instituto conforme critérios meritocráticos, com base em seus desempenhos no Curso de Aplicação e estágio voluntário em um dos laboratórios do IOC – o que poderia garantir, após a contratação, uma nomeação para um cargo vitalício. Tais condições encontravam-se explícitas nos documentos que regulamentavam o funcionamento do Instituto.

 

Linhagens familiares entre trabalhadores auxiliares contratados no Instituto Oswaldo Cruz, 1900-1930:

Trabalhador

Familiares que ingressaram posteriormente

José Muniz de Medeiros

Antonio Muniz de Medeiros Filho

Alexandre Amaral

Henrique Amaral

Antonio Borriello Junior

Salvador Borriello, Benedito Borriello, Attilio Borriello, José Borriello

José Rodrigues Pedro

Domingos Rodrigues Pedro

Julio da Silva Ventel

Mario da Silva Ventel

João Viegas Pugas

Antonio Viegas Pugas

Joaquim Venâncio Fernandes

Manoel Fernandes, Venâncio Bonfim, Sebastião Patrocínio, Hugo Fernandes e Renê Fernandes

Alfredo Alves Marreiros

Rubem Alves Marreiros

Basilio Aor

Hamlet William Aor, Waldemar Aor, Benedito Aor

Fonte: Fundo: Instituto Oswaldo Cruz. Seção: Cadastro de Funcionários Estatutários. Série: Livro de Registros.

CARGOS E FUNÇÕES

Uma prática comum em Manguinhos era o rodízio dos auxiliares pelas diversas oficinas que compunham as Seções Administrativas Auxiliares: biblioteca, museu, desenho, fotografia e microfotografia, tipografia, esterilização e preparo de meios de cultura, distribuição de soros e vacinas, biotérios e cavalariças, mecânica e eletricidade, carpintaria, conservação de imóveis e estradas, oficinas de encadernação, de preparação de ampolas e de aparelhos de vidro.

Trabalhadores do setor de Embalagens de soros e vacinas para distribuição. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: [1920-1930]. Autor: J.Pinto

 

Na seção de meios de cultura, os auxiliares eram responsáveis pelas preparações químicas utilizadas para o crescimento de microrganismos em laboratório. Era necessário saber os tipos de substâncias e garantir um perfeito equilíbrio do pH, testar a qualidade e a esterilização. O serviço atendia a todo o Instituto e produzia grandes quantidades de material que eram enviados para as pesquisas e para a produção de soros e vacinas. Funcionando inicialmente no Pavilhão Mourisco, foi transferido durante a década de 1940 para o andar térreo do prédio do Quinino (Pavilhão de medicamentos oficiais).

O bom desempenho de suas funções, assiduidade, respeito à hierarquia, dedicação, amor ao trabalho e lealdade, faziam parte dos requisitos básicos para ingressar no trabalho dos laboratórios.

dois homens estão sentados em mesas posicionadas frente à frente em um laboratório. Em cima de cada mesa há um recipiente grande e esférico com um líquido escuro. Através de uma mangueira os auxiliares transferem o líquido para recipientes menores, também de vidro Sala de Preparo e Meio de Cultura no andar térreo do Pavilhão Mourisco. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem Data. Autor: J.Pinto
a imagem mostra uma sala de laboratório com uma grande bancada e um homem sentado que manipula drágeas de medicamentos, armazenando-as em um pote de vidro escuro. Sob a bancada há vários potes iguais aos que o homem está enchendo Trabalhador do Pavilhão de Medicamentos Oficiais, Quinino. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor: J. Pinto
dois homens estão em uma sala de laboratório trabalhando com máquinas manuais Trabalhadores responsáveis pelas etapas de envasamento de medicamentos no Quinino. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem Data. Autor: J.Pinto

Os três primeiros regulamentos do Instituto Oswaldo Cruz normatizavam seu funcionamento, sua missão, determinando também, dentre outras regulações, sobre funções, cargos, salários e regime de trabalho de seus funcionários.

Nos documentos, os auxiliares de laboratório eram denominados “serventes” e enquadrados como “pessoal subalterno”, nomeados ou contratados. Não havia descrição de normas ou critérios que versassem sobre suas atribuições, admissões, nomeações e ascensão funcional, pois estas questões ficavam a cargo do diretor do Instituto. Era ele quem admitia, contratava e nomeava, conformando mais uma vez o caráter pessoal dessas relações de trabalho.

No primeiro regulamento, datado de 1908, o quadro de pessoal nomeado dos chamados “subalternos” era composto por um chefe de cocheiras, quatro serventes de primeira classe, quatro serventes de segunda classe, cinco ajudantes, um mestre, dois maquinistas e dois foguistas.

acesse aqui os regulamentos de 1908, 1919 e 1926
Ao fundo junto aos cavalos, estão três dos quatro serventes que à época trabalhavam no Instituto Soroterápico: José Muniz de Medeiros, Artur Leite Câmara, Manoel Dias Caldeira e Miguel Ferreira dos Santos. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
O segundo regulamento, de 1919, trazia mudanças em relação a alguns direitos do trabalho, quando os funcionários do IOC passaram a ter os mesmos benefícios dos funcionários federais no que dizia respeito às licenças e aposentadorias. E ainda algumas alterações relativas aos cargos de nomeação do “pessoal subalterno”, extinguindo algumas carreiras, criando outras, como a de auxiliar de laboratório. Os cargos passavam a ter classes distintas com salários compatíveis com cada nível. No entanto, permaneciam as decisões arbitrárias. Os aumentos de salários e promoções eram atribuídos de forma indiscriminada pelo diretor do Instituto. Com frequência, se observava trabalhadores da mesma classe funcional recebendo valores distintos.

Vencimentos do pessoal do Instituto Oswaldo Cruz a que se refere o art. 51 de regulamento aprovado pelo decreto n. 13.527, de 29 de março de 1919.

 Cargos e vencimentos

Total mensal

Total anual

05 auxiliares de laboratório, a 300$000 mensais

1:500$000

18:000$000

06 serventes de 1ª classe, a 250$000 mensais

1:500$000

18:000$000

06 serventes de 2ª classe, a 200$000 mensais

1:200$000

14:400$000

10 serventes de 3ª classe, a 180$000 mensais

1:800$000

21:600$000

06 serventes de 4ª classe, a 150$000 mensais

900$000

10:800$000

Fonte: Brasil, 1919, p.08.

[...] Aumentar um colega em 30 mil réis que esse aumento não fosse geral, dava uma inveja de morte [...] Porque os aumentos eram de 30 em 30 mil réis. Aumentos pequeninos. Então, tinha uma turma lá de laboratorista ganhando 110. No próximo pagamento vinha... Eu, por exemplo, ou um outro qualquer, 140, mais 30. Ah, minha filha! Aquele que foi aumentado tinha que padecer. Porque não merece, é proteção... Mas isto existe até hoje. O mundo é o mesmo. O mundo não modificou. (Attilio Borriello, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 2, lado B).

O terceiro Regulamento, de 1926, instituiu uma divisão administrativa do IOC com a criação de seções científicas, administrativas e auxiliares. Cada uma das seções possuía naturezas distintas e uma subdivisão em setores. Mas, na prática, esta divisão não seguia o estabelecido pelo Regulamento.

 

O Instituto era organizado até em seção. Tinha chefe. Mas o sujeito não se limitava a fazer uma coisa só. Eles faziam o que bem entendiam. Quer dizer, um protozoologista pesquisar tifo exantemático, isso é fora de propósito, não tem nada uma coisa com a outra. Mas isso aconteceu (José Cunha, 1987. Acervo COC/Fiocruz. Fita 1, lado B).

 

Foi instituído o cartão de ponto e a carga horária passou a ser regulada em oito horas de trabalho diário. Apesar disso, os auxiliares de laboratório poderiam ser convocados para executar serviços fora das horas de trabalho, ou que exigissem a permanência durante a noite, feriados e domingos, de acordo com as exigências do serviço ou conveniência da administração, mas não recebiam remuneração pelas horas extras trabalhadas.

 

[Entrevistador] ele não recebia por aquelas horas que trabalhava a mais? [AB] Nada, nada, mas se ele ficava doente, se ele tinha um mal estar, ele era amparado, ele era amparado. Eu contei que Chagas mandava até funcionário para Belo Horizonte, para se refazer. Ele tinha amparo. Então ele retribuía dando tudo de si para a repartição (Attilio Borriello, 1986. Acervo COC/Fiocruz, Fita 2, lado B).
acesse aqui as seções administrativas
 
 
Para os funcionários superiores, as horas extras funcionavam como critério de merecimento para promoção e substituição, sendo computadas mensalmente.
As nomeações e promoções dos cargos de auxiliar de laboratório e de serventes continuaram sendo uma prerrogativa do Diretor e aconteciam de forma intermitente e temporária, de caráter interino. Era comum o deslocamento para um cargo de maior nível, retornando depois para seu cargo anterior.
A nomeação definitiva como funcionário do quadro do Instituto ocorria a partir da vacância definitiva de um determinado cargo, por motivo de morte, exoneração ou, após 1919, aposentadoria. Os direitos do trabalho só vieram bem mais tarde, após a década de 1930.
quatro homens sentados em uma mesa. um homem ao fundo Mario Ventel ao fundo. Em primeiro plano Lauro Travassos, José Carneiro Felippe, Júlio Muniz e Ângelo Moreira da Costa Lima. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor: J. Pinto

[Entrevistador] O senhor quando veio para cá não tinha nenhum benefício? [AB] Nada! Nada, nada, nada, nada. [...] Tudo é de Getúlio. Tudo, todo trabalhador deve rezar para Getúlio. Tudo, tudo que nós temos é de Getúlio Vargas. [...] Nem se discutia isso. [...] a turma que trabalhava aqui, andava por aqui muito pé descalço, e quando entrou Getúlio, depois das leis, a turma usava sapato... quase ninguém usava sapato. [...] trabalhador de campo era pé no chão. Não tinha garantia nenhuma (Attilio Borriello, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 2, lado A ).

PENALIDADES E PUNIÇÕES

Dentre as muitas atribuições que cabiam ao Diretor do Instituto, constava nos três regulamentos a aplicação de penas disciplinares. Estas poderiam ser de censura verbal e escrita, com suspensão de até vinte dias. As penalidades valiam para todo e qualquer funcionário de Manguinhos, mas nas notações dos livros de registros funcionais só foram encontradas punições para os cargos do chamado “pessoal subalterno”. As penas no IOC eram aplicadas quase sempre de forma arbitrária e buscavam, sobretudo, regular e normatizar o comportamento dos trabalhadores.

O quadro exibe as penalidades aplicadas aos trabalhadores auxiliares no período entre 1913 e 1936:

Tipo e motivo das penalidades aplicadas aos trabalhadores subalternos do Instituto Oswaldo Cruz no período 1913-1936:

Nome do Trabalhador/Cargo
Penalidade
Ano da ocorrência
Motivo
Localização
Oldemar Coelho de Almeida
(Servente de laboratório)
Multado em 01 dia
1913
Por fazer uso do toilette destinado aos empregados superiores;
Livro 1, folha 38
(verso)
Rômulo Monico dos Santos
(Servente de Laboratório)
Multado*
1923
Por ter faltado após lhe ser negada a licença que solicitara alegando estar doente quando foi visto viajando em pleno gozo da saúde;
Livro 1, folha 39
(verso)
Suspenso por 10 dias
1925
Por não ter observado a ordem da zeladoria de apresentação regulamentar ao serviço;
Mauricio de Miranda Leila
(Servente do quadro extraordinário)
Multado em 01 dia
1913
Por ter trocado o pernoite que lhe cabia sem previa autorização do zelador;
Livro 1 folha 57
(verso)
Augusto Vespasiano do Carmo (Servente com vencimentos pela caixa do Instituto)
Multado em 03 dias
1916
Por ter se dirigido ao assistente Dr. Alcides Godoy sem a devida atenção;
Livro 1, folha 60
(verso)
Cornelio Dias de Carvalho (Servente de laboratório)
Multado em 05 dias
1914
Por ter sido encontrado dormindo sobre a mesa no laboratório do Dr. Carlos Chagas em hora de serviço;
Livro 1, folha 63
Multado*
1914
Por ter deixado aberto, sem necessidade, o gás no 3° andar durante a noite;
Cesar Annibale (Mecânico)
Multado em 01 dia
1911
Por não ter levado ao conhecimento do zelador o incidente ocorrido na cozinha entre os serventes Ernani de Moura Caldas e Balduíno Martins;
Livro 1, folha 64
Adelino Barros
(Servente das cocheiras)
Multado em 02 dias
1914
Por ter concorrido para que a carroça, carregada de material, virasse junto à portaria da fazenda;
Livro 1, folha 69
José Marques da Silva
(Servente com vencimento pela renda própria)
Suspenso*
1929
Em vista de denúncia apresentada pelo almoxarife (desaparecimento de drogas farmacêuticas do IOC) até que se apure sua responsabilidade para aplicação de pena maior;
Livro 1, folha 69
Balduíno Martins
(Servente de laboratório)
Suspenso*
1911
Porque se envolveu em um incidente ocorrido na cozinha com Ernani de Moura Caldas;
Livro 1, folha 78
José Coelho dos Santos (Ajudante de pintor)
Suspenso por 05 dias
1925
Por ordem do Sr Diretor, por não tratar o Zelador com a devida consideração;
Livro 1, folha 90
João Viegas Puga
(Vigia)
Multado em 03 dias
1923
Por pouco empenho com seus deveres de vigia;
Livro 2, folha 02
Antonio Pereira Coelho (Chauffer)
Multado em 05 dias
1924
Por ter atravessado o trilho da estrada de ferro Leopoldina com o carro de passageiros enquanto o sinal estava fechado e quase foi apanhado pelo trem;
Livro 2, folha 04
Alfredo Alves Marreiros (Servente de laboratório)
Suspenso por 08 dias
1924
Por promover desordem com seu companheiro Jayme Antonio da Hora;
Livro 2, folha 60
Manoel Lobão
(Servente de laboratório)
Suspenso por 15 dias
1928
Por ter pego emprestado dois pneumáticos usados com o pintor Domingos dos Santos;
Livro 2, folha 69
Domingos dos Santos (Pintor)
Suspenso por 08 dias
1928
Por haver emprestado 2 pneumáticos a Manoel Lobão ;
Livro 2, folha 69
Hamlet William Aor (Tipógrafo em 1922 e Servente de laboratório em 1936)
Suspenso por 05 dias
1922
Por haver desrespeitado o chefe da tipografia;
Livro 2, folha 88
Suspenso*
1936**
Por desacato ao diretor do IOC até que o Ministro de Estado da Educação e Saúde decida sobre o seu destino;
Livro 2, folha 88
João de Souza
(Servente do hospital)
Dispensado
1924
Insubordinado;
Livro 3, folha 231
* Nos Livros de Registros não consta o detalhamento destas penalidades.
** No caso de Hamlet Aor, que sofreu duas penalidades, consideramos importante manter a segunda, mesmo que tenha ultrapassado o escopo temporal da pesquisa, pois o seu depoimento oral nos permitiu comparar a narrativa institucional com a narrativa do trabalhador.
Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Fundo: Instituto Oswaldo Cruz. Seção: Cadastro de Funcionários Estatutários. Série: Livro de Registros.
As distinções entre superiores e auxiliares se davam em diversas situações dentro do Instituto, como podemos observar no trecho do depoimento do médico do IOC Hugo de Souza Lopes. Espaços diferenciados para comer, cores dos uniformes e jalecos, concessões e proibições de jornada de trabalho…

 

Tinha condução da portaria até dentro do Instituto. Era a "Viúva". Quando a gente ou um estudante entrava na "Viúva", os serventes que estavam sentados levantavam- se para dar lugar. Tinha gente que não se sentava. Mas havia esse tipo de disciplina (Hugo de Souza Lopes, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 1, lado B).

Eu era garoto de calça curta ainda. Era a primeira vez que eu entrava numa oficina e ainda não estava ambientado. Via as máquinas trabalhando: uma imprimindo, a outra compondo, aquele cheiro de tinta. Toda aquela atividade e eu feito um índio que nunca tinha vindo á cidade, olhando para um lado e para o outro, isto é, procurando me ambientar. Foi quando lá pelas dez horas, o subchefe, um mulato, alto, magro, chamado Tertuliano, chegou perto de mim e disse: “Vamos ver o que você já sabe. Onde é o A, o B, etc.” É claro que eu não ia dizer tudo certo. Eu estava cheio de dedos, ainda. Então ele disse para mim: “Depois do almoço eu venho aqui outra vez. Se tu não me der essa caixa decorada, eu vou te cortar as orelhas com esta tesoura,” E eu disse: “E eu lhe dou com esse ferro na cabeça.” Passei a mão num ferro que tinha lá, que eu nem sabia o que era. “Garoto abusado!” ele disse. Mas eu fiquei revoltado com aquilo. O pessoal ficou me olhando pensando: “Ih, esse é brabo.” [...] Depois de trabalhar quase dois anos na tipografia, surgiu um aborrecimento com o chefe mesmo, o advogado. [...] naquela época batiam! Eu apanhei. Um dia fiquei revoltado, mandei ele dar na mãe dele. O chefe, o advogado. Ah, aí já era demais. Eu disse a ele: “Vá bater na sua mãe, porque eu não sou seu filho”, “Vai embora daqui”, “Não vou sem ordem do diretor.” Eu também era fraco/abusado. Não deixava as coisas em brancas nuvens. Levava a pior sempre, é lógico (Hamlet Aor, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 1, lado B).

um rapaz me pediu para ser o substituto dele durante suas férias para trabalhar com o doutor Werneck. [...] A caneta desse médico era uma tesoura. Ele fazia as experiências com bichos, recortava revistas científicas e colava debaixo das figuras. Ficava aquele monte de papel cortado de tesoura por ele. Eu juntava aquilo tudo e botava no lixo. Um belo dia entrou no laboratório o doutor Lauro Travassos e o doutor Carneiro Felipe, da comissão de redação das Memórias do Instituto,[...] com o material todo na mão: as revistas e os trabalhos dele para serem publicados. Disseram: “Doutor Werneck, seus trabalhos não vão ser publicados nas Memórias, o que o senhor está fazendo não é científico. O senhor está plagiando. Olha aqui: está coincidindo com estas separatas de outras revistas científicas. Está aqui. O senhor está recortando e colando embaixo.” Eu tenho a impressão que ele ficou com raiva de mim. Se ficou, é porque subestimou a capacidade científica dos dois cientistas. Eu não disse nada a ninguém. Eu não tinha nada para dizer. Não tinha que me meter nisso. Não era meu campo. Nunca fiz isso com ninguém. [...] Aí, fui almoçar, fechei a porta e deixei o laboratório limpo. [...] Quando eu voltei do almoço, o laboratório estava escancarado: porta aberta, o chão cheio de papel picado. Pensei: “Esse homem é doido. Ele mesmo não quer que deixe o laboratório aberto, como é que ele deixou?” Limpei tudo, varri, botei a porcariada toda dele no lixo, fechei a porta e vim para fora porque ainda era hora do almoço. Quando eu cheguei ali no centro telefônico, no primeiro andar, encostado ao elevador, desce o doutor Fontes, o vice- diretor, que era secretário, doutor Leocádio Chaves e ele. “Olha ele aí” me apontou para o diretor. “Mas você abandonou o laboratório?”, “O que o senhor está dizendo? Não abandonei. Houve isso assim”. Falei. “Você deixou o laboratório aberto?”, “Eu não deixei. É mentira desse safado”, “Esse cara tá mentindo.” Aí, eu já estava querendo outra coisa. Ele disse que me suspendia. “Pode até botar na rua que eu estou pouco me incomodando. Ou o senhor pensa que é só aqui que se trabalha para ganhar o pão do dia? Eu estou aqui emprestado”, eu disse para o diretor. Ficou naquela coisa, ele dizendo que me mandava prender e eu dizendo que ele era um besta. A coisa foi engrossando. Proibiram que eu assinasse o ponto, para me botar na rua como abandono de emprego. Foi o que aconteceu (Hamlet Aor, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 2, lado B).

Era evidente a hierarquia existente, e todos os elementos no trabalho garantiam sua estrutura. Isso se observava, por exemplo, no elevador do Castelo Mourisco: havia um compartimento social para os cientistas e outro abaixo deste, o de carga, para os auxiliares. Em um ambiente marcado por diferenças sociais e hierárquicas, o racismo mostra-se um elemento que perpassa os indivíduos, em todas as suas esferas, e que gera muitos problemas. As violências – expressas ou subjetivas – nas ações das pessoas, não atingem somente as classes subalternizadas, mas todos.

para saber mais sobre racismo estrutural

Um dia eu cheguei aqui, peguei o elevador, e o elevador [...] tinha a parte social que era a parte de cima, e a dos serventes, que era a parte de baixo, né. Isso tem hoje, desde a época do Oswaldo Cruz.[...] antigamente utilizavam. [...] tranqüilamente. E quando o elevador trazia serventes, tá, e que paravam no térreo, os serventes iam pro porão, porque primeiro descia a pessoa, não parava pra descer os serventes, descia primeiro os doutores e depois é que subia pra deixar os serventes. Isso eu peguei essa época. Então um dia, estava o ascensorista e eu que tinha apanhado no térreo o elevador, lá embaixo, lá no térreo. E a Bertha Lutz, [...] entrou aqui no elevador no primeiro andar e ia pra biblioteca, eu ia também. Ela foi, virou-se para o ascensorista e disse – “Escuta fulano”- disse o nome do fulano. – “servente já pode entrar aqui na...” – E aí o rapaz olhou. E eu confesso que até na primeira hora não percebi a coisa. Ele disse – “Não doutora, aqui não tem nenhum servente.” Aí é que eu percebi a coisa. – “Aqui não tem nenhum servente, tem o Dr. Sebastião.” Aí subiu. E ela fez de propósito, porque ela me conhecia inclusive. Mas fez de propósito (Sebastião Oliveira, 1987. Acervo COC/Fiocruz. Fita 6, lado A).

acesse aqui a home do Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz
Certa vez, perguntado por uma pesquisadora sobre a existência de racismo na instituição, Carlos Chagas Filho respondeu:

 

Nenhuma. Basta ver a popularidade, a coisa do Venâncio ou do Nico, por exemplo. Evidentemente eles não sentavam à mesa dos patrões, mas não havia. O que havia, implantado pelo Oswaldo Cruz, era uma disciplina de trabalho muito grande. Isto não há a menor dúvida (Carlos Chagas Filho, 1987. Acervo COC/Fiocruz. Fita 7, lado A).
No trecho deste depoimento, o pesquisador Carlos Chagas Filho refere-se a Joaquim Venâncio. A relação de Chagas Filho com Venâncio era a típica relação de cordialidade que acabou prevalecendo na história oficial do trabalho técnico no Instituto. Ao longo de seu depoimento, o cientista exalta os atributos físicos e suas qualidades afetivas:

 

A primeira personagem a me influenciar e a quem eu me liguei no Instituto foi Joaquim Venâncio. [...] era filho ou neto, creio que era filho, de uma escrava da fazenda de minha avó. Era um caboclo, desse tom um pouco esverdeado que muitos mulatos têm, que não se sabe se vem de índio ou da raça negra, e que um dos meus tios dizia que era uma das características da boa mestiçagem. Joaquim Venâncio era um homem extremamente atraente. Relativamente baixo, era, como se dizia, parrudo, forte, um tronco muito volumoso, talvez mais forte, [...] em proporção, do que as pernas. E de uma afabilidade extraordinária. Tinha pelo meu pai como por Lutz uma grande adoração. E conta-se até que Joaquim Venâncio era utilizado, calças abaixadas [...] nádegas iluminadas [...] pelo Lutz para pegar mosquitos [...] Eu já disse uma vez, e repito aqui, que o meu primeiro grande mestre no Instituto Oswaldo Cruz foi o Joaquim Venâncio, que me ensinou a gostar de bicho, me ensinou como é que se trata os bichos e me ensinou realmente coisas muito importantes. Principalmente me ensinou um trato humano formidável. E nós éramos realmente como irmãos, não tínhamos, quer dizer, eu era uma espécie de filho dele e não só ele me levava ao laboratório do Lutz como também me mostrava as cavalariças, que tinham muito interesse para mim (Carlos Chagas Filho, 1987. Acervo COC/Fiocruz. Fita 6, lado A e Fita 8, lado B).

 

O olhar de Chagas Filho sobre Venâncio é revelador das contradições que permeavam estas relações. O afeto presente na narrativa, não exime as expectativas que se tinham sobre o trabalhador subalterno ideal: a robustez, a força, a dedicação incondicional ao trabalho e a docilidade no trato com os cientistas. Assim era possível que fosse considerado como um membro da família, exceto na hora das refeições.