Histórias dos Trabalhadores Técnicos da Fiocruz

Manguinhos de Muitas Memórias

“Vestiu as botas, aquela roupa, aquele traje e saiu”*

As condições sanitárias no Brasil no início do século XX eram um entrave à promessa do ideal republicano de progresso e civilização. Dar um fim à imagem de cidades insalubres e inseguras tornou-se um objetivo central dos governantes que buscaram remodelar os centros urbanos na tentativa de acabar com as muitas epidemias que atingiam a população da capital (peste bubônica, febre amarela, varíola...). A ciência e a saúde pública tiveram uma importância crucial nesse processo. Se a situação era crítica nas cidades, no interior era ainda mais grave.

Sanear os “sertões” tornou-se um projeto nacional que continha os valores, símbolos e práticas do progresso: a construção de ferrovias, demarcação de fronteiras, utilização de recursos naturais. A partir deste panorama, as expedições científicas pelo interior do Brasil começaram a ser requisitadas tanto pelo governo como pela iniciativa privada. Buscando estudar e combater diferentes doenças, o IOC realizou viagens científicas por todo o território brasileiro. O trabalho dos auxiliares foi fundamental para o bom êxito dos estudos e pesquisas de campo.

* Francisco Gomes, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 2, lado A

Antigo Hospital de Lassance. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: [1908-1919] Autor: J. Pinto.

 

 

As excursões para o interior iniciaram antes mesmo da constituição oficial do Instituto Oswaldo Cruz. Em 1906, funcionários do Instituto foram enviados para o Maranhão para combater a peste bubônica e organizar um serviço de saúde pública no estado. No mesmo ano, um outro grupo trabalhou na profilaxia da malária em Itatinga, interior de São Paulo. No entanto, foi em Lassance, Minas Gerais, que o médico Carlos Chagas estabeleceu um pequeno laboratório e hospital para estudos sobre o Tripanossoma Cruzi, o agente etiológico da doença de Chagas. Lassance é cenário de muitas histórias que envolvem não apenas o trabalho das expedições, mas também a vida pessoal de alguns trabalhadores aqui apresentados.

cena de um acampamento em uma mata ao centro, duas crianças e um homem preparam a comida Acampamento em Lassance. Ao centro o menino Francisco Gomes segura um bule de café. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor: J.Pinto

 

 

 

Apesar de as condições de trabalho serem bastante precárias, os auxiliares realizavam suas atividades com organização e capricho. Havia todo um planejamento, organização e cuidado na montagem das tendas, no manuseio dos objetos de laboratório, na carga, descarga e cuidado dos animais que serviam de transporte. A logística dinamizava o trabalho e agilizava os estudos e pesquisas, garantindo a funcionalidade do acampamento, mantendo o ambiente limpo, capinado e arrumado.

um grupo de homens reunidos com uma lona grande e troncos de árvores cortados Auxiliares montando o acampamento da Expedição aos Vales do Rio São Francisco e Tocantins. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: 1911. Autor: João Stamato

Os auxiliares também ficavam responsáveis por recrutar moradores locais que tinham como funções carregar os materiais mais pesados, atravessar rios e guiá-los pela região. Neste trabalho, que poderia durar meses, eles supervisionavam os contratados e garantiam a boa execução das tarefas. Com a convivência vinte e quatro horas por dia, a relação entre subalternizados e superiores novamente se misturava e criava a ideia de amizade. O caráter fiel dos trabalhadores era muito valorizado pelos cientistas, mas nem sempre era garantia de remuneração adequada. Octavio do Amaral, contratado pelo IOC em fevereiro de 1912, foi o auxiliar que acompanhou a expedição de Belisário Penna e Artur Neiva desde o início dos trabalhos. Realizada em 1916, a viagem percorreu uma vasta região do nordeste do país e do estado de Goiás. No trecho do relatório destacado a seguir, os cientistas referem-se ao momento da despedida dos demais membros da expedição recrutados em Juazeiro, na Bahia:

"Liquidamos contas com nossos camaradas que foram dispensados. Dois deles não queriam deixar-nos e declararam que nos acompanhariam até Anhanguera, ponto final da viagem a cavalo. É justiça assinalar a fidelidade de nossos camaradas, quatro dos quais nos acompanharam desde Joazeiro até Goiaz. Tivemos de dispensar dois homens em caminho, por ser um tanto turbulento e rixoso, e o outro por ser velho e não suportar a viagem; nenhum por improbidade ou por desrespeito. Apezar de rústicos e analfabetos quase todos (durante o percurso lidamos com 12 camaradas), serviram-nos com dedicação, concorrendo eficazmente para a marcha excepcional que realizamos. Eram eles os primeiros que se levantavam, geralmente as 4 1⁄2 da madrugada, às vezes mais cedo e os últimos que se acomodavam quando chegávamos aos pouzos. Realizaram todo percurso a pé, utilizando-se algumas vezes dos animais adestros. Em resistência, duvidamos que haja raça igual á do sertanejo do nordeste. Dê-se-lhe carne de sol, farinha e rapadura e ele caminhará a pé, sem desfalecimento, mezes a fio, por quasquer rejiões" (PENNA e NEIVA, 1916, p.220)

 

 

 

 

 

 

 

Entre os meses de janeiro a março de 1918, José de Vasconcellos acompanhou a viagem científica no Rio Paraná e Assunção com volta por Buenos Aires, Montevideo e Rio Grande. Nesta expedição, Vasconcellos atuou na coleta de espécimes de insetos, moluscos e protozoários.

imagem de uma canoa indígena em um rio, dentro da mata. quatro homens embarcados. à esquerda um homem sem camisa segura um remo. sentado à sua direita, está José de Vasconcellos, auxiliar do Instituto Oswaldo Cruz. De pé, o médico Astrogildo Machado e do seu lado direito, sentado, o médico Adolpho Lutz José de Vasconcellos sentado na canoa à esquerda, seguido por Astrogildo Machado, de pé e Adolpho Lutz, sentado. Acervo: Instituto Adolfo Lutz. Data: 1918. Autor: desconhecido.
Barca à noite entre os municípios Teresina e Floriano com membros da expedição reunidos. De pé estão os auxiliares e sentados, os cientistas. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: 1912. Autor desconhecido.

O trabalho que um auxiliar realizava era motivo de orgulho tanto para si quanto para os colegas e envolvia atividades diversas. Algumas eram mais simples (coleta de amostras de material, caça de animais, abertura de cacimba de água nos acampamentos, cozinhar, cuidar dos animais usados como meios de transporte e daqueles que seriam levados vivos para o Instituto, alimentação e limpeza das gaiolas, montagem e desmontagem das barracas).

Outros afazeres podiam ser mais sofisticados e compartilhados com os cientistas (autópsias em animais; preparações microscópicas de material e leituras de lâminas laboratoriais; preparação de meios de cultura e conservação de espécies minerais, vegetais e animais variados utilizados nas pesquisas de campo, ou peças anatômicas que deveriam ser transportadas para Manguinhos).

 

 

 

 

 

Mario Ventel era exímio anatomista e microfotógrafo e auxiliava seu chefe, Lauro Travassos, realizando pesquisas sobre helmintos. A seção de Zoologia Médica de Manguinhos possuía uma vasta coleção de parasitas recolhidas nas muitas expedições em que Ventel participou.

Mario Ventel, de costas, nos trabalhos da expedição. De frente, o médico Teixeira de Freitas. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: 1942. Autor desconhecido. Mario Ventel, de costas, realizando uma autópsia junto com Lauro Travassos. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: 1942. Autor desconhecido.
Volta da caçada. Da esquerda para direita: Mário Ventel e Lino. Salobra, Mato Grosso. Acervo casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Autor desconhecido. 1942.