Histórias dos Trabalhadores Técnicos da Fiocruz

Manguinhos de Muitas Memórias

"A gente acabava aprendendo todas as coisas"*

A educação no período histórico da Primeira República (1889 – 1930) tinha como objetivo superar a experiência educacional do Império, tida como entrave às noções de modernidade e de progresso. Isso quer dizer que a missão da educação era a de organizar a sociedade através da escolarização, difundindo valores e princípios compatíveis com os anseios de um projeto de uma nação moderna, nos moldes da experiência europeia. Porém, na prática, poucas pessoas foram contempladas por esse projeto, uma vez que o acesso à escolarização ficava mais restrito aos filhos das elites, o que acabava reafirmando a desigualdade social. Havia ainda enormes diferenças de acesso entre as populações residentes nas áreas urbanas e rurais. No campo, as limitações eram muito maiores do que na cidade.

No Instituto Oswaldo Cruz, poucos trabalhadores tiveram acesso à escola formal. Muitos deixaram cedo os bancos escolares ou sequer chegaram a frequentar uma escola. O aprendizado acontecia durante o trabalho, com os próprios colegas mais antigos e com os cientistas. Alguns trabalhadores, ao ingressar no Instituto, já traziam consigo saberes e experiências herdadas de suas vivências e ancestralidades, e eram autodidatas. Aqueles que sabiam ler e escrever, buscavam ainda aprimorar seus conhecimentos burlando algumas regras da própria instituição, inscrevendo-se em escolas noturnas e buscando acesso aos livros da biblioteca, vedados a eles. Apesar das limitações impostas aos trabalhadores técnicos, trabalhar, estudar e participar ativamente dos processos de pesquisa com êxito era, nas palavras deles, a possibilidade de tornar-se um “técnico completo”.

* Francisco Gomes, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita3, lado A

Eu aprendi muita coisa porque, como os demais colegas, a gente corria o laboratório, não tinha só um ponto de referência – era chamado para trabalhar com o pesquisador tal. De maneiras que a gente fazia rodízios e a gente acabava aprendendo todas as coisas e se tornava um técnico completo [...] (Francisco Gomes, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 4, lado A).

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Os processos de aprendizado eram diferentes, dependendo de quem ensinava. Com os cientistas a relação trazia as marcas da hierarquia e da autoridade, que variavam conforme o humor do chefe de laboratório . Estes nem sempre tinham paciência para explicar os procedimentos, mas eram muito exigentes esperando agilidade e compreensão de cada tarefa.

Manoel Gomes (agachado), Borges (de jaleco mais escuro) e Antonio, auxiliares de laboratório realizando sangria de cavalos junto com Figueiredo de Vasconcelos. Cavalariça, Rio de Janeiro. Acervo COC/Fiocruz. Autor: J. Pinto. Sem data
Ele [Julio Muniz, chefe do laboratório de Protozoologia] não ensinava, ele insinuava. Ele obrigava a gente a fazer. Eu não me lembro que um dia ele dissesse pra mim: Faz assim ou assim. Nunca disse. Mas ele dava dicas, fazendo, e gente como eu [...] ficava ajudando. “Me dá uma pinça, me dá isso”. No outro dia ele dizia: “Faz isso”. [...] Ele não queria saber se eu sabia ou não pipetar [...] como é que eu organizava as reações. Isso era conosco. Por isso é que nem todas as pessoas puderam aprender. Passaram anos no Instituto sem fazer nada (José Cunha, 1987. Acervo COC/Fiocruz. Fita1, lado B).

[...] quando Miguel Osório viajava, eu ficava com o Thales Martins – super, ultra exigente, demais exigente: ele queria uma coisa já, não queria saber de que forma a gente ia conseguir, e fui eu que mais agüentei o Thales Martins; porque ninguém agüentava, ficava dois meses, três meses, caía fora, e eu é que mais agüentei. Mas sofria o diabo com ele; ele era exigente demais. Ensinava, era bom porque ele ensinava, ensinava tudo, mas era exigente. Eu aprendi demais com o Thales Martins – citologia, aprendi muita coisa mesmo (Francisco Gomes, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 2, lado A)

A relação de aprendizado com os cientistas carregava muitas contradições e era marcada por uma rígida hierarquia. De forma ambígua, ao mesmo tempo em que reconheciam a capacidade do auxiliar desempenhar seu trabalho com autonomia, podiam considerar uma ousadia o livre pensar sobre seu saber e a aquisição autônoma de outras habilidades. A ideia de insubordinação corrobora ainda com a questão racial, estruturante da sociedade brasileira. O outro, racializado, precisa provar constantemente que é digno de confiança.

 

Essa frase eu escutei do [...] Dr. Astrogildo Machado, um dos descobridores da vacina contra a manqueira, sobre dois auxiliares. [...] Antônio Maria Filho e outro era Elói Rosa. Todos dois trabalhavam com ele. Um dia, o comentário do Dr. Machado foi o seguinte: “Eu tenho dois auxiliares, um, aquilo que eu ensinei há trinta anos, ele faz igualzinho!” Era o Elói. Aquilo que ele aprendeu há 30 anos, método de repique, ele repetia. “Já o Antônio” – Antônio era o Antônio Maria – “insubordinado, faz a mesma coisa por um método muito superior, muito mais evoluído”. Um era mulato e outro era pretinho. Mas o pretinho, o escurinho, era uma coisa. Evoluiu e o outro não. O outro se dizia cospe, ele cuspia (Attilio Borriello, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 5, Lado A). 

 

Antonio Maria Filho e Eloy Inácio Rosas, auxiliares de laboratório. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: 1930-1940. Autor: J.Pinto

O aprendizado com os colegas se dava de uma maneira mais horizontal e os mais antigos e experientes ensinavam aos mais novos. Este cenário, mais solidário, permitia que todos experimentassem o compartilhamento de conhecimentos e saberes.

[...] quando eu fui trabalhar com o Julio Muniz eu comecei a ajudar o melhor dos meus amigos [Oldemar Coelho de Almeida]. Esse sim me ensinou. Porque era carinhoso, interessante. Eu ia na casa dele brincar, ele me levava para brincar com a filha dele (José Cunha, 1987. Acervo COC/Fiocruz. Fita 1, lado B).

 

Ah, bastante, colaborei bastante, porque os novos que chegavam, a gente tinha que ensinar, e a gente fazia aquilo com muito prazer – ensinar os colegas novos que ingressavam. A gente tinha o maior prazer de ensinar tudo aquilo que a gente tinha aprendido (Francisco Gomes, 1986. Acervo COC/Fiocruz, Fita 3, lado B).

Joaquim Venâncio era reconhecido por todos pelo seu saber e sua astúcia. Ele ensinava aos colegas seus métodos e técnicas de trabalho e alguns o chamavam de “guru”. Francisco Gomes pedia sua ajuda sempre que tinha dificuldade com alguma tarefa solicitada por seus chefes cientistas.

 

[...] eu tinha que arranjar camaleão grande, que ele tinha uma experiência, que precisava começar a experiência e precisava de camaleão. “Mas como é que eu vou fazer pra pegar camaleão, doutor? Vou andar subindo em cima das pedras...” – “Você dá um jeito, que eu quero os camaleões.” Digo: “Vou no meu guru, é o jeito.” “Ô, Joaquim, eu tô com um problema: o Dr. Thales exigiu que quer que eu arranje um camaleão de qualquer jeito. Quê que eu vou fazer?” “É fácil, é fácil. Amanhã nós vamos naquela pedreira (tinha uma pedreira aqui no porto de Maria-Angu)[...]. Então, vê a argúcia do Joaquim. Naquele tempo não existia fio de nylon. Mas o rabo de cavalo é como fio de nylon, tem resistência, arma. Então nós fomos lá no rabo do cavalo, cortamos uns fios compridos, ele armou uma laçada, fez uma laçada e completou com linha preta. E pegamos umas baratas vivas, [...] E fomos lá pra pedreira, e aquilo na ponta de uma vara de bambu bem comprida. Aí o camaleão aparecia lá na pedra, ia arriando assim aquela barata [..] ele ficava ouriçado, pulava e [...] ficava preso, o camaleão dançando no laço, porque aí ele apertava a laçada. Olha, só no primeiro dia nós pegamos quarenta e tantos camaleões, camaleão grande, que eu cheguei, o Thales Martins ficou maluco. “Agora tu não diz a ele como pegou não. (risos) Você só diz a ele que os camaleões estão aí.” Quando eu cheguei [...], o Thales Martins quase caiu pra trás (Francisco Gomes, 1986. Acervo COC/Fiocruz Fita 2, lado A).

Essa relação de aprendizado não ficava restrita ao ambiente do laboratório. Alguns colegas davam aulas de conhecimentos gerais uns aos outros ou apoiavam-se para que pudessem viabilizar o acesso à educação formal.

 

A minha escolaridade eu não devo assim a um membro da família de me orientar. “Vamos estudar”. Eu devo a um rapaz daqui do [Instituto] Oswaldo Cruz, com o nome de Rubem Ramos, que ele era escriturário (Venâncio Bonfim, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 1, lado A).

 

[Entrevistadora] pelo fato do senhor morar aqui, muitas vezes o senhor quebrava o galho de um colega, não é? [Attilio] De outros, que iam para o colégio. Esse de leishmânia (referindo-se a Abílio Lopes de Oliveira), do Gaspar Viana, estudava à noite. Em períodos que eu não estudava. Quantas peças anatômicas eu tirei para ele. Dentro do fixador, mudando de água, lavagem, quantas! (Attilio Borriello, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 2, lado B).

Poucos auxiliares de laboratório tiveram oportunidade de dar continuidade aos estudos até chegar ao nível superior de escolaridade. Aqueles que conseguiram foram atravessados por uma situação peculiar: durante a pandemia da Gripe Espanhola, em 1918, para contornar a falta de profissionais de saúde, muitos contaminados pela gripe, e dar assistência à população, o Instituto Oswaldo Cruz concedeu a alguns de seus técnicos uma certificação de formação superior para atuarem nos postos de atendimento localizados na capital.

 

A certificação dos auxiliares, mesmo que em um contexto de emergência, validava o fato de que os conhecimentos adquiridos na experiência de trabalho nos laboratórios de Manguinhos tornavam os auxiliares de laboratório aptos para exercer profissões mais qualificadas socialmente.

Ao ponto de Manguinhos mandar dois médicos biônicos na época da gripe espanhola [...]. Um foi para o hospital, que era o servente do doutor Eurico Villela, o Caldas [...] e o Zé Cunha [...] parece que era servente ou do Dr. Cardoso Fontes ou do Dr. Cesar Guerreiro. Havia carência de médicos para assinar atestado de óbito, devido à mortandade causada pela gripe espanhola e pela guerra de 1914. Não havia tempo até para enterrar os cadáveres e aquilo infeccionou o mundo; atingiu até aqui o Brasil. Então fizeram isso (Hamlet Aor, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 3, lado B).

José Barbosa da Cunha, auxiliar de laboratório, de pé, junto à bancada. Cardoso Fontes sentado, junto ao microscópio. Acervo casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Autor: J. Pinto. Sem data

Mas houve gente aqui que chegasse até a médico. Parece que Ernani de Moura Caldas foi auxiliar e chegou a médico, Gustavo Pires, trabalhou aqui [...] chegou a médico [...]. Então, quem tinha base, tinha mais chance. Agora, quem não tinha [...] (Venâncio Bonfim, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 2, lado B).

Excetuando esses casos incomuns,  os auxiliares buscavam seus próprios meios de seguir com seus estudos e aprimorar seus conhecimentos. Embora as dificuldades fossem grandes, sempre davam um jeito de encontrar brechas para estudar e aprender mais. A rede de sociabilidades e de apoio mútuo construída por eles funcionava não apenas no momento do trabalho, mas também no dia a dia dentro do Instituto.

João Grande participava ativamente desta rede, permitindo acesso de seus colegas a livros da biblioteca. Na sua função de organizar, arquivar e controlar as fichas de empréstimo e cuidar da limpeza, ele permitia que muitos auxiliares pegassem livros sem que os cientistas soubessem, colaborando para que pudessem estudar e aprender mais sobre seus próprios ofícios.

João Simões Paulo, o João Grande, de pé, junto à estante de livros. Sentado em frente à máquina de escrever, Assuerus OWermeer. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor: J. Pinto.

Quando perguntado sobre a oportunidade de ir à biblioteca e acessar os livros, Cunha responde:

Se quisesse, talvez, mais por camaradagem, ser ou não amigo dos bibliotecários. Eu acho que se eu quisesse ler muitos livros lá, como li alguns [...] (José Cunha, 1987. Acervo COC/Fiocruz. Fita 3, lado B)

 

Venâncio Bonfim também aprendeu de forma autodidata, através do acesso aos livros da biblioteca do Instituto:

 

Eu fui à biblioteca, arranjei um livro que dizia todas as posições como se aplica injeção, quais os perigos, quais os cuidados. E eu como tinha muitas cobaias na periferia de Manguinhos, não havia luz ainda, muita gente, eu comecei a aplicar injeção em todo mundo. Tinha que aplicar injeção, era comigo (Venâncio Bonfim, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 2, lado A)

Francisco Gomes, o Chico Trombone, foi “apadrinhado” por Carlos Chagas desde que o conheceu, em 1918. Foi Chagas quem o alfabetizou. Já adulto foi enviado pelo cientista para a filial do Instituto em Belo Horizonte, para que pudesse fazer os preparatórios e cursar medicina, seu sonho. Surpreendido pela morte de Chagas foi obrigado a voltar para o Rio de Janeiro e retomar seu trabalho de auxiliar, sem prestar o vestibular. O acesso à educação, neste caso, era uma concessão que passava pela pessoalidade e pelo favor que mediava as relações entre os trabalhadores subalternizados e seus superiores.

 

[...] Já naquele tempo havia uma certa coisa de... digamos aquele... carrancismo bravo, não deixava. Então ele me disse assim: olha, você pra estudar tem que sair daqui porque se eu botar você pra estudar aqui, eu vou sofrer muito demais. Eles vão me criticar muito, assim eu vou te mandar pra Belo Horizonte e você fica com o Otávio Magalhães lá, e o Otávio Magalhães te bota lá pra você fazer – o que se chamava- os preparatórios para ingressar na Faculdade. Aí, então eu fui pra Belo Horizonte fiquei lá no Instituto filial com o Otávio Magalhães. E tava estudando lá, foi quando ele morreu e o novo diretor que chegou mandou eu vir de volta (Francisco Gomes, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 1, lado A).
Acampamento em Lassance. A criança sentada ao centro é Francisco Gomes, o Chico Trombone. Lassance, MG. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor: J.Pinto.

A questão racial revelou-se um importante marcador para o acesso à escolaridade formal: os trabalhadores brancos, filhos de imigrantes, ao ingressar em Manguinhos, já haviam passado pela experiência da escola e buscaram dar continuidade aos seus estudos. Já os negros, descendentes de escravizados, chegaram ao Instituto sem alfabetização. 

O acesso limitado à educação formal, dado pela condição social e racial dos trabalhadores auxiliares, não impediu que estes adquirissem os conhecimentos necessários para o bom desempenho de seu trabalho. 

Joaquim Venâncio é um dos maiores símbolos disso, tanto por suas técnicas, seus métodos, sua inteligência e seu conhecimento quanto pelo reconhecimento de seus colegas e de seus superiores. Um exemplo foi uma carta enviada pelo Embaixador da Alemanha no Brasil que havia solicitado ao IOC um estudo sobre anfíbios . Prontamente, a direção do Instituto recorreu a quem mais entendia do assunto:

 

[...] houve uma coisa muito curiosa com o Joaquim; ele era demais inteligente: um embaixador alemão mandou uma carta pro diretor aqui e queria 12 exemplares, se o Instituto poderia enviar pra Alemanha 12 exemplares de um tipo de uma perereca estranha que tinha no Brasil, muito rara, muito rara.[...]. Então o diretor chamou o Joaquim, se ele podia satisfazer esse pedido do governo alemão então: - “Ah, pois não” então ele foi... caiu em campo, vestiu as botas e aquela roupa, aquele traje de pântano, e saiu, e conseguiu exatamente o tipo. Aí mandou tudo determinado: espécie, tipo, habitat, tudo, escreveu tudo e eu é quem fui levar lá na Embaixada da Alemanha, ali nas Laranjeiras. O embaixador ficou maravilhado, maravilhado com a história, de ter conseguido tão rapidamente um tipo de batráquio tão raro, e o Joaquim conseguiu aquilo de um dia pro outro. Conseguiu de um dia para o outro. Ele já sabia onde existia tal tipo de perereca. (Francisco Gomes, 1986. Acervo COC/Fiocruz. Fita 2, lado A).

 

Os saberes que já traziam consigo, os aprendizados com os cientistas, com os colegas de laboratório e a rede de sociabilidades que construíram, proporcionou uma ascensão profissional por dentro de sua categoria profissional, mas não chegou a representar uma ruptura com a condição de subalternizado.