Histórias dos Trabalhadores Técnicos da Fiocruz

Manguinhos de Muitas Memórias

Nós, trabalhadores

É pela aproximação amorosa, pelo ato de acariciar com devoção sagrada – amor, eu diria – as pedrinhas miúdas, que me ilumino no mundo. Os olhos brasileiros são os únicos que tenho para mirar os dias. É com eles que eu busco conhecer e, mais do que isso, me reconhecer, na aldeia dos meus pais e do meu filho – terra das alegrias na fresta, das canções de gentilezas e dos fuzuês onde, amiúde, não se imaginaria, de tão escassa, a vida. (SIMAS, L.A.  2013, p. 14)

 

Nesta seção apresentamos, como diz Luiz Antonio Simas, algumas das muitas “pedrinhas miudinhas” da história da Fiocruz: seus trabalhadores técnicos. As pedrinhas de brita em uma construção são aquelas que ficam por trás dos acabamentos de uma obra, utilizadas para dar estrutura, alicerçar, dar mais resistência à compressão e ao desgaste do tempo.
Os técnicos da saúde são como pedrinhas de brita. Representam mais da metade do contingente total de trabalhadores em saúde no Brasil, distribuídos em diversas categorias. Sua atuação envolve diferentes modalidades de assistência à saúde, da Atenção Primária até a alta complexidade hospitalar, estando presentes também nas equipes de estudos e pesquisas voltadas para a produção de medicamentos, vacinas, insumos, complementação diagnóstica, e tantos outros. No entanto, mesmo executando atividades consideradas fundamentais, ainda permanecem invisibilizados em seus processos de trabalho e diante da sociedade em geral.   

 

Na história da Fiocruz esses trabalhadores atuaram lado a lado com os cientistas nas pesquisas experimentais, na produção de medicamentos, vacinas, soros e outros insumos, no trabalho de campo das expedições científicas, no ensino e tiveram uma participação fundamental no desenvolvimento da ciência e da saúde pública brasileira. Essas histórias trazem outros ângulos para que possamos conhecer e refletir sobre a trajetória da Fiocruz em suas três primeiras décadas de existência. Aqui você vai saber um pouco mais sobre estes trabalhadores e conhecer alguns desses rostos e nomes.
Joaquim Venâncio e outros em mata. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: 19/05/1952. Autor desconhecido.

Abílio Lopes de Oliveira

Abílio Lopes de Oliveira ingressou em Manguinhos em 1913, contratado pelas rendas próprias. Nasceu no interior da Bahia e migrou para São Paulo, empregando-se como trabalhador rural. Neste período, adquiriu Leishmania Brasiliensis e suas úlceras cutâneas chamaram a atenção do médico Gaspar Vianna, que se encontrava na região realizando estudos sobre a doença. Vianna trouxe Abílio para o Rio de Janeiro, para que fosse tratado e, ao mesmo tempo, seu caso clínico foi estudado pelo pesquisador. Depois de curado, permaneceu residindo e trabalhando em Manguinhos, tornando-se um auxiliar de laboratório especialista em anatomia patológica. Abílio estudava à noite e contou com a ajuda de seus companheiros de trabalho que cuidavam da manutenção das peças anatômicas sob sua responsabilidade, armazenadas no Museu de Anatomia Patológica que ficava no terceiro andar do Castelo. Em seus registros consta que, em 1924, foi para a Estação de Lassance, em Minas Gerais, para realizar pesquisas sobre flagelados com o médico Carlos Burle de Figueiredo.
 
Abílio era espírita e junto com outros companheiros do IOC que compartilhavam da mesma doutrina religiosa, fundou a Congregação Espírita Oswaldo Cruz, no dia 25 de março de 1933. A fundação da Congregação aconteceu na casa de Bessa Contizano dos Santos, que morava próximo ao Instituto, na Avenida Bruxelas, n° 133, em Bonsucesso. Nesta data estavam presentes e participaram da fundação da entidade, além de Abílio Lopes de Oliveira, os seguintes trabalhadores: Bessa Contizano, maquinista do Instituto desde 1908, Caetano Ferrara, bombeiro, contratado em 1906; Manoel Joaquim de Souza, foguista, contratado em 1911, e Victor Polidoro, carpinteiro, contratado em 1904. O nome do patrono da congregação, Oswaldo Cruz, foi sugerido no mesmo dia da fundação da entidade, através de prece e vidência de Abílio Lopes, e foi aprovado por unanimidade pelos demais companheiros presentes, que adotaram como lema uma frase atribuída a Oswaldo Cruz: “Não esmorecer para não desmerecer”.
Ficha de filiação da Congregação Espírita Oswaldo Cruz. Acervo CEOC. Bonsucesso, Rio de Janeiro, 1933. Ficha de filiação da Congregação Espírita Oswaldo Cruz. Acervo CEOC. Bonsucesso, Rio de Janeiro, 1933.
Ficha de registro funcional de Abílio Lopes de Oliveira. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de Abílio Lopes de Oliveira. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

Altino Rodrigues Benfica

Tio de Francisco José Rodrigues Gomes, o Chico Trombone, Altino Rodrigues Benfica acompanhava o médico Carlos Chagas em todos os trabalhos: nas temporadas em Lassance e no Instituto Oswaldo Cruz. Responsável por organizar a infraestrutura para que as pesquisas pudessem ser realizadas, cuidava do acampamento na mata, do preparo da comida e da limpeza. Foi Altino quem levou Francisco, ainda menino, para a cidade mineira, campo de estudos da doença de Chagas. Ele era uma espécie de mateiro, um faz tudo, “fiel escudeiro” do cientista.
Em seus assentamentos funcionais, a primeira data de seus registros é do ano de 1922, quando foi admitido como servente do Hospital de Lassance. Dois anos mais tarde, foi transferido para o Hospital de Doenças Tropicais (atual INI/Fiocruz) onde atuou até 1935, quando foi aposentado. Três anos após sua aposentadoria, em 1938, fez-se constar em suas notações que trabalhou em Lassance de janeiro de 1911 até dezembro de 1922 "recebendo uma gratificação mensal, variável, de acordo com as combinações e a verba destacada para o mesmo serviço" (Folhas 176 e 176 verso, Livro 2, Cadastro de Funcionários Estatutários. Acervo COC/Fiocruz).  

Antonio Ferreira Amaro

Antonio Ferreira Amaro era um dos auxiliares “veteranos” que trabalhavam na seção de Anatomia Patológica. Este setor era responsável pelas autópsias e necropsias, estas últimas, forneciam material de estudo em histologia e embriologia, através do envio de peças cirúrgicas que compunham a coleção do Museu de Anatomia Patológica. Antonio Amaro era portugês e nasceu em 11 de fevereiro de 1887. Seu ingresso no IOC se dá através do médico Oswino Alvares Penna, com quem já trabalhava em um hospital militar da Marinha.

 

Em 1929, solicita que constem em seus assentamentos o tempo em que trabalhou em outros estabelecimentos: em 1911 e 1912, foi guarda do pavilhão do Hospital Nacional de Alienados, de 1913 a 1919 foi servente do Hospital Central da Marinha. Abaixo, um trecho da notação de seus assentamentos que versa sobre seu trabalho na Marinha:

 

O Inspetor de Saúde Naval, tendo em conta o serviço que acaba de prestar com a fabricação de vacinas contra a febre tíficas e paratíficas A e B o laboratório de análises químicas e sendo testemunho do serviço exaustivo que demanda tal certame, tenham de reconhecer o perigo que correm seus mais diretos obreiros, os quais visando sempre o bom nome da corporação a qual pertencem e tendo em mira o bem da pátria não só a ela se entregaram e (está ilegível) [...] louva como a área faz a todo pessoal de laboratório e muito especialmente aos Srs Capitão Tenente Médico Dr Orsino Álvares Penna, Enf. Naval de segunda classe Francisco Luiz de Souza e o servente Antonio Ferreira Amaro pela exemplar dedicação ao serviço para o qual não pouparam sacrifícios de espécie alguma (Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Livro de Registros Funcionais. Livro 2, folha 37).

retrato de Antonio Ferreira Amaro Antonio Ferreira Amaro. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: 1938. Autor: J. Pinto
Ficha de registro funcional de Antonio Ferreira Amaro. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de Antonio Ferreira Amaro. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

Antonio Maria Filho e Eloy Ignacio Rosas

Antonio Maria Filho ingressou em Manguinhos em 02 de junho de 1917 como trabalhador das cocheiras. Seu ordenado era de 20 mil réis. Em 1919 passou a trabalhar como contratado na seção de meios de cultura com vencimentos de 50 mil réis. No ano seguinte, foi aumentado três vezes de salário, chegando a receber 120 mil réis. Somente em 1926 seu salário foi reajustado novamente, para 180 mil réis. Na década de 1930, já efetivado, seu cargo passou a denominar-se auxiliar de laboratório. Antonio e Eloy Ignacio Rosas trabalharam junto com o Dr. Astrogildo Machado e aprenderam com o cientista as técnicas para produzir a Vacina da Manqueira, uma vacina veterinária, cuja comercialização foi responsável por manter a autonomia financeira e o orçamento necessário para o desenvolvimento das pesquisas no IOC por quase duas décadas.

Eloy Ignacio Rosas teve seu primeiro registro assentado em março de 1918 como servente contratado, no entanto, em 1912 já havia participado da expedição científica ao rio São Francisco e por alguns dos seus afluentes entre Pirapora e Juazeiro, acompanhando o médico Astrogildo Machado. A expedição teve como objetivo conhecer a geografia, zoologia, botânica, e condições sanitárias da região e foi financiada pela Inspetoria de Obras contra as Secas, órgão federal criado em 1909 para combater as secas periódicas que assolavam a região nordeste. Em 1919 foi admitido como servente de 4ª classe, e em 1922 passou a servente de 2ª classe. Da mesma forma que Antonio, seu cargo passou a auxiliar de laboratório na década de 1930.

Attilio Romulo Borriello

Attilio Romulo Borriello nasceu no dia 20 de agosto de 1905, em São Luis do Paraitinga, cidade do interior paulista, na mesma casa onde nasceu Oswaldo Cruz. Sua família, como tantas outras à época, imigrou da Itália no século XIX. Seus pais, Antonio Borriello e Filomena Padula, estabeleceram-se na cidade fabricando e comercializando alambiques de cobre que vendiam para fazendas da região.

Attilio sempre sonhou em sair do interior e viver na capital. A oportunidade se deu na adolescência, através de relações de amizade entre seu irmão mais velho, Antonio Borriello Junior e Waldomiro Rodrigues de Andrade, advogado e filho de abastada família da cidade, cujo patriarca, João Candido de Andrade, tinha estreitas relações com o médico Bento Gonçalves Cruz, pai de Oswaldo Cruz.

Waldomiro era tesoureiro do Instituto Oswaldo Cruz e foi o responsável pelo ingresso dos irmãos Borriello em Manguinhos. Eram cinco: Antônio, Benedito, o próprio Attilio, José e Salvador.

Attilio chegou no Instituto em maio de 1921, quando tinha 15 anos. Começou trabalhando como ajudante de tipógrafo. Por causa de seu senso de organização, seu gosto por fichas e livros de apontamentos e sua perfeita caligrafia, foi transferido para o almoxarifado. Em 1924, foi escolhido para trabalhar no laboratório de Protozoologia como auxiliar do médico Henrique Aragão. Na década de 1930, Attilio foi surpreendido com a convocação do próprio diretor do Instituto, na época Carlos Chagas, para ser seu auxiliar. Seu trabalho consistia em separar e classificar as diferentes espécies de triatomas (barbeiros), abrindo cadernos com data de postura, data de nascimento das larvas, e sua evolução até a fase adulta. Além dos trabalhos de laboratório, executava atividades de catalogação e arquivamento de revistas e livros, pertencentes ao acervo do gabinete de Chagas. Attilio auxiliou Chagas até que este faleceu em 1934. Trabalhar com o Diretor do IOC deu a Attilio um lugar de prestígio e consideração, mesmo entre os cientistas. Como eram muitos os afazeres sob sua responsabilidade, Attilio solicitou a Chagas que pudesse, ele mesmo, ter um auxiliar, para execução dos serviços mais simples, como transportar os animais das gaiolas para o laboratório e fazer a limpeza. Tal solicitação foi prontamente autorizada pelo diretor, dando a Attilio a prerrogativa de escolher seu assistente. O escolhido foi José de Carvalho Melo, que trabalhava com o Dr. Lauro Travassos. No entanto, Travassos pediu a Attilio que não lhe tirasse um de seus melhores auxiliares e o pedido foi acatado.

A mando de Waldomiro Andrade, Attilio foi ainda uma espécie de procurador de 18 cientistas. Todos os meses, em dias de pagamento, ia até o antigo prédio do Tesouro, localizado no centro da cidade, na Av. Passos, receber o vencimento por eles e trazia tudo para Manguinhos. No caminho de volta, passava antes no Café da Ordem, na Rua da Carioca, onde Chagas o aguardava, nas palavras do próprio Attilio “sentado lá numa mesinha, com a sua piteira, seu cigarrinho” e entregava a ele seu salário. (Borriello, Attilio Romulo. Attilio Borriello. Entrevista de História Oral, 1986. Rio de Janeiro, FIOCRUZ/COC, 2021. 124p, p. 53)  

 

Os registros funcionais de Attilio demonstram que sua trajetória profissional foi sempre ascendente dentro de sua categoria profissional. Na década de 1940, foi promovido ao cargo de Biologista Auxiliar. Em 1951, da mesma forma, foi promovido ao cargo de Auxiliar de Pesquisador. Sua aposentadoria se deu em 1957, após 36 anos de trabalho dedicados ao Instituto Oswaldo Cruz. 

Balduíno Martins

Balduíno Martins ingressou no Instituto em 1909 como trabalhador das obras. No ano de 1911, há uma referência ao nome de Ernani de Moura Caldas, que teria se envolvido em um incidente na cozinha com Balduíno Martins. Não há um detalhamento sobre a ocorrência, mas o incidente causou somente a suspensão de Balduíno. Em 1919, foi contratado como servente de 3ª classe. Em seus registros consta ainda que, em outra ocasião, no ano de 1921 foi preso por 3 meses por lesão corporal. Cumpriu sua pena e reassumiu seu cargo no IOC. Em 1931, com a reformulação do Regulamento do Instituto, o cargo de servente de 3ª classe de Balduíno, passou a ser denominado auxiliar de laboratório de 3ª classe.

Ernani de Moura Caldas

Ernani de Moura Caldas nasceu em Sumidouro, à época distrito de Friburgo, estado do Rio de Janeiro, em 1896. Seus pais eram o dentista Leandro Pereira Caldas e Ana Júlia de Moura, filha de uma família de proprietários rurais da cidade de Duas Barras, também localizada no estado do Rio de Janeiro. O casal tinha 16 filhos, Ernani era o décimo quinto. Após a morte do pai e a perda das propriedades da família, entregues para pagar dívidas, com dificuldades para criar os filhos, a mãe de Ernani o deixou aos cuidados de seu padrinho, o médico Augusto Vespasiano de Moura. Tio Moura, como era chamado, o enviou para o Instituto Oswaldo Cruz e Ernani prometeu que um dia seria médico, seguindo seu exemplo.

 

Chegou ainda adolescente a Manguinhos e foi morar no Pavilhão da Peste, ou Pavilhão do Relógio, prédio do conjunto histórico arquitetônico, onde se produzia o soro antipestoso. A parte de cima do edifício era uma espécie de sótão, onde dormiam 04 trabalhadores auxiliares que, como Ernani, moravam em Manguinhos. Entre eles estava Narcizo de Araújo, seu melhor amigo e posteriormente compadre e concunhado. Ernani era apaixonado por cavalos e costumava cavalgar pelos terrenos do Instituto. Sua outra paixão era o futebol. Tanto assim que foi membro da primeira diretoria do Manguinhos F.C., time de futebol fundado em 1915 por funcionários do IOC e que chegou a disputar vários campeonatos na década de 1920.

 

Em 1918, em decorrência da pandemia de gripe espanhola e da crise sanitária que se instalou no Brasil, Carlos Chagas, à época diretor do IOC, foi incumbido de organizar a oferta do atendimento de saúde à população. Para suprir a falta de profissionais de saúde, muitos deles mortos na pandemia, concedeu títulos de nível superior para alguns auxiliares de laboratório do Instituto, para que estes pudessem auxiliar no atendimento aos doentes nos muitos postos de socorro montados em escolas, fábricas e outras repartições. Ernani de Moura Caldas foi um dos profissionais recrutados para servir nos postos de saúde. Avaliado por seus méritos como servente de laboratório, foi escalado para trabalhar como farmacêutico, aviando receitas e organizando a dispensação de medicamentos. No entanto, em seus registros funcionais do Instituto não há qualquer menção ao seu diploma superior.

 

Em 1923, pediu exoneração do IOC e foi trabalhar no Hospital Francisco de Assis, mas continuou morando no Instituto até se casar, nesse mesmo ano, com Dulce França, irmã mais nova da esposa de seu amigo Narcizo de Araújo. Com seu diploma de farmacêutico, pôde complementar suas rendas trabalhando em uma indústria química no bairro de Bonsucesso. Em 1930 ingressou no curso de medicina da Universidade do Brasil na Praia Vermelha, cumprindo a promessa que havia feito para seu padrinho. Após a conclusão do curso de Medicina, em 1938, Ernani solicitou ao Ministério da Educação e Saúde Pública o seu reenquadramento na carreira de médico e foi transferido para trabalhar em Ramos, no Posto 11.

 

Mais tarde, já na década de 1940, um outro acontecimento na vida de Ernani provocou mais uma mudança em sua trajetória profissional: ele comprou uma cartela de bilhetes da loteria federal e foi sorteado. Com o dinheiro do prêmio, construiu uma casa para morar com sua família e adquiriu sua própria farmácia, a Farmácia das Nações, em Bonsucesso. Ernani passou a ser o médico de referência das famílias do bairro. Em sua farmácia, manipulava os medicamentos e atendia em seu consultório, montado no segundo andar do sobrado. Sua clientela era formada majoritariamente de pessoas da região e de localidades próximas. Era muito conhecido e querido entre os moradores da comunidade do Jacarezinho, atendendo-os gratuitamente. Na época, assumiu também a direção da Casa de Saúde de Bonsucesso, uma clínica privada. Aos 63 anos começou a ter problemas de saúde e sofreu diversos infartos. Morreu no dia 06 de novembro de 1964, aos 68 anos, após um ataque do coração.
Retrato de Ernani de Moura Caldas Retrato de Ernani de Moura Caldas. Acervo pessoal de Teresa Trevino. Sem data. Autor desconhecido.
Ficha de registro funcional de Ernani de Moura Caldas. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de Ernani de Moura Caldas. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz.

Francisco José Rodrigues Gomes

O começo da trajetória de Francisco José Rodrigues Gomes está intimamente relacionado à cidade de Lassance, localizada na região norte de Minas Gerais. Foi para lá que, em 1918, aos sete anos, foi levado por seu tio Altino, que trabalhava com o médico Carlos Chagas auxiliando-o em todos seus trabalhos de campo. Inicialmente, o cientista não aprovou a permanência de Francisco no local e pediu que fosse levado de volta ao Rio de Janeiro na próxima viagem. Nesse meio tempo, Francisco ficou trabalhando com seu tio e, em um episódio incomum, capturou uma gambá e a entregou a Chagas. O sangue do animal, como constatado pelo médico, continha o trypanossoma cruzi, vetor da doença de chagas. Após esse episódio, Francisco pôde continuar na cidade. A convivência entre Francisco e Carlos Chagas fez com que o médico pedisse materiais de estudo para que ele pudesse aprender a ler e escrever.

 

Francisco Gomes viveu em Lassance durante cinco anos e conviveu com diferentes pesquisadores do Instituto que iam frequentemente até a estação colaborar nas pesquisas. Chegou a Manguinhos com 12 anos, em 1923, e foi morar dentro do Instituto, no sótão do Pavilhão da Peste. Trabalhou em várias oficinas e laboratórios, mas seus assentamentos funcionais só iniciaram em 1930, contratado como servente de cocheiras, trabalhando com sangrias de cavalo e produção de soro. Carlos Chagas queria que Francisco estudasse medicina, mas o receio de ser criticado somado ao preconceito racial que o próprio Francisco denominou de “carrancismo branco” fizeram com que o auxiliar fosse enviado por Chagas para a filial do Instituto Oswaldo Cruz, em Belo Horizonte, para que pudesse estudar e trabalhar. Na capital mineira, Francisco iniciou os preparatórios para o ingresso na Faculdade e adquiriu experiência no trabalho com serpentes.

 

Em 1934, logo após a morte de Chagas, Francisco foi chamado de volta para Manguinhos pelo novo diretor, obrigado a interromper seus estudos, retornando para o trabalho nos laboratórios. Após o seu retorno, vai para o laboratório de fisiologia trabalhar com o médico Miguel Osório de Almeida e com o médico Thales Martins. Este último era muito rude com os subalternizados, exigindo tarefas quase impossíveis de serem cumpridas. Francisco, porém, não se apertava e recorria sempre aos colegas de trabalho. Um deles era Joaquim Venâncio, a quem chamava de “guru”. Da mesma forma, Francisco gostava de ensinar aos mais jovens e inexperientes e estava sempre pronto a colaborar.

 

Sua personalidade era expansiva e gostava muito de música, tanto que participava de uma orquestra tocando trombone, o que rendeu a Francisco Gomes o apelido de “Chico Trombone”. A orquestra não era formada com seus companheiros do IOC, mas os ensaios eram realizados lá à noite, ou nos fins de semana. No entanto, seu chefe, Thales Martins, não admitia os ensaios da orquestra e ameaçava quebrar o seu instrumento. Astuto, Chico escondia seu trombone embaixo de um armário em um dos laboratórios e depois passou a guardá-lo em uma casa no Morro do Amorim.

 

Francisco atuou em várias campanhas sanitárias. No Rio de Janeiro, durante uma campanha de esquistossomose, descobriu focos da doença em chácaras de cultivo de agrião em Jacarépagua, o que resultou em uma publicação de seu chefe Geth Jansen sobre a endemia. Em Belém do Pará, ficou três anos trabalhando com Evandro Chagas em pesquisas sobre filariose. Em Araxá, Minas Gerais, realizou uma campanha para combater a doença de Chagas, permanecendo por vários meses na parte velha da cidade, coletando triatomas e fazendo diagnóstico da população. Francisco produziu um relatório detalhado sobre a situação, mas nunca foi publicado. As autoridades locais não queriam que a endemia fosse divulgada, para não atrapalhar o turismo. Durante o período da ditadura militar, Francisco sofreu perseguição política por parte do diretor do IOC à época, Rocha Lagoa. Acusado de terrorismo, teve que depor para uma junta militar. Constava nos autos que o auxiliar de laboratório participava de um vatapá “subversivo” que acontecia dentro do Instituto. O tal vatapá era um almoço de confraternização que ocorria, esporadicamente, aos sábados. Os cientistas cotizavam e uma pesquisadora levava a iguaria pronta de casa. Francisco participava lavando as panelas e os pratos no final.

 

Por causa dessa perseguição, Chico teve que requerer compulsoriamente sua aposentadoria, após quase cinquenta anos dedicados ao Instituto Oswaldo Cruz, aproveitando uma viagem do diretor que o perseguia. Mesmo assim, continuou trabalhando sem remuneração com o pesquisador Gilberto Vilela, para que a pesquisa em que vinha participando não fosse interrompida, pois era o responsável pela dieta de sais minerais dispensada às cobaias. Nesta ocasião, foi ameaçado com arma de fogo pelos seguranças do diretor e proibido de entrar no IOC. Na década de 1980, durante a gestão de Sérgio Arouca e a anistia política pós-ditadura, Chico voltou a trabalhar no Instituto, no Departamento de Fisiologia e Farmacodinâmica com o médico Haity Moussatché, e como auxiliar de ensino da Faculdade de Medicina de Teresópolis e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Francisco faleceu em 27 de maio de 1991 de insuficiência respiratória.

Hamlet William Aor

Hamlet William Aor nasceu em 22 de setembro de 1910, na cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Bonsucesso. Filho de Basílio Silvestre Aor e de Ambrosina Tezzi, ambos italianos. Seu pai foi o mestre de obras das construções históricas do Instituto Oswaldo Cruz. Após a morte do pai e, a pedido de sua mãe, foi admitido, junto com seu irmão mais velho, para trabalhar como aprendiz no Instituto Oswaldo Cruz, em 1921.
 
Começou na tipografia, mas não admitia o tratamento rude dispensado aos trabalhadores subalternizados de Manguinhos. Por isso, foi transferido de setor algumas vezes, até que cansou de ser maltratado e foi tentar outros trabalhos, fora do IOC. Depois de passar por várias experiências profissionais diferentes, conseguiu trabalho em uma fábrica de ampolas de vidro, no bairro do Riachuelo, e foi lá que começou a aprender os primeiros ensinamentos da sua profissão de vidreiro. Em 1926, foi readmitido no Instituto Oswaldo Cruz, para trabalhar na seção de ampolas que funcionava no prédio do Quinino, e lá pôde aperfeiçoar sua prática profissional. Em 1936, teve uma breve passagem como auxiliar de laboratório, substituindo um colega em férias. Na ocasião, foi vítima de uma intriga forjada por um cientista em retaliação por ter presenciado uma tentativa de fraude em artigo científico. O diretor do Instituto, Cardoso Fontes, acatou a versão do cientista e Hamlet não ficou calado. Por conta disso, foi punido com uma suspensão, ficando impedido de assinar o ponto por 30 dias, para que constasse abandono de trabalho.

 

Hamlet militou no Partido Comunista Brasileiro. Entre os anos de 1932 a 1934, atuou em uma tipografia clandestina imprimindo panfletos, jornais e outros materiais para o partido. Participante ativo, frequentava reuniões clandestinas e grupos de estudo sobre a teoria marxista. Neste período, trabalhava no Instituto e tentou formar uma célula do partido com seus companheiros de trabalho, mas a iniciativa não teve êxito; não pela ideologia, mas pelo medo que tinham de serem descobertos e presos. Na década de 1960, Hamlet trabalhou diretamente com o médico Walter Oswaldo Cruz, filho de Oswaldo Cruz, fabricando para seu laboratório aparelhos de vidro bastante sofisticados. Foi um dos poucos auxiliares que completou sua formação profissional, diplomando-se em Técnico de Vidraria pela Faculdade de Farmácia do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

Ambleto, como era chamado, gostava de cinema e de mafuá. Foi atleta, remador do Clube Boqueirão e do Vasco da Gama, disputando e vencendo algumas regatas na década de 1940. Hamlet casou-se aos 52 anos, após sua aposentadoria, com Dona Claudemira. Era ateu convicto. Faleceu em 1986, com 76 anos.
dois homens com uniforme do Vasco sentado em uma canoa de remo O double do Vasco: Hamlet Aor está atrás de seu companheiro de remo, Agenor. Acervo BNDigital. Biblioteca Nacional. Jornal A Noite, Edição de sábado, 23 de Nov de 1946. p. 12
Ficha de registro funcional de Hamlet William Aor. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de Hamlet William Aor. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz
Ficha de registro funciuonal de Hamlet William Aor. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de Hamlet William Aor. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

Jerônimo Cardoso

Jerônimo Cardoso era o encarregado do Museu de Anatomia Patológica que ficava localizado no terceiro andar do prédio do Castelo Mourisco. O Museu preservava a coleção anatomopatológica com peças anatômicas raras e insubstituíveis, com lesões observadas em doenças como a peste pulmonar, a varíola e a febre amarela. Cardoso ingressou em Manguinhos, em 1912, como servente contratado. Em 1919, passou a ser responsável pelo trabalho no Museu. Era ele quem montava as peças anatômicas transformando-as em objetos museológicos. O Museu era um local valorizado pelos auxiliares de laboratório. Nas horas vagas, alguns iam até lá por gosto e distração. Dois objetos chamavam a atenção dos auxiliares: a perna do aviador italiano Carlo Del Prete, que faleceu em um grave acidente aéreo em 1928, e um rim, de uma autópsia feita no Hospital São Francisco de Assis, de onde retiraram três quilos e meio de areia e pedra.
Ficha de registro funcional de Jerônimo Cardoso Folha do Livro de Registros funcionais de Jerônimo Cardoso. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

João Simões Paulo

João Simões Paulo, o João Grande, ingressou em Manguinhos em 1904 como ajudante nas obras do sítio arquitetônico, e posteriormente foi aproveitado para os trabalhos da biblioteca. Era vizinho e muito amigo de Basílio Aor, mestre de obras do Castelo e das demais edificações históricas. Era também o padrinho de Hamlet William Aor. O trabalho de arquivamento e controle das fichas da biblioteca desempenhado por João Grande pode ter colaborado algumas vezes para que os auxiliares de laboratório pudessem tomar livros emprestado, sem o conhecimento dos cientistas, uma vez que a biblioteca era um espaço vedado aos serventes do IOC. João Grande foi um personagem importante da história do trabalho técnico na Fiocruz, compondo a rede de sociabilidades entre os trabalhadores auxiliares de Manguinhos.
Um homem alto de bigodes junto a uma estante cheia de livros, dentro de uma biblioteca João Simões Paulo (João o Grande). Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor: J.Pinto.
Ficha de registro funcional de João Simões Paulo. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de João Simões Paulo. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

Joaquim Venâncio Fernandes

Joaquim Venâncio Fernandes foi um dos mais reconhecidos auxiliares de laboratório da Fiocruz. Nasceu em 23 de maio de 1895, na Fazenda Bela Vista, propriedade da família Chagas. Chegou ao Instituto em 1916, aos 21 anos, mas sua efetivação como funcionário só ocorreu seis anos depois.

 

Para além do conhecimento técnico-científico que adquiriu ao longo de sua experiência profissional, Joaquim Venâncio já trazia consigo saberes ancestrais e tácitos de sua experiência de vida. Tinha enorme conhecimento sobre zoologia e botânica e era reconhecido como “guru”, pois tinha prazer em ensinar métodos e técnicas para seus colegas de trabalho. Trabalhou junto a vários cientistas no IOC, e foi citado como colaborador direto em muitos artigos científicos.

 

Desde que se mudou para o Rio de Janeiro, morou sempre dentro de Manguinhos. Casado com Sebastiana Batista de Carvalho Fernandes, tiveram cinco filhos: Wanderley, Celso, Joaquim, Renê e Hugo. Os dois últimos foram admitidos no Instituto na década de 1940. Ele tinha um temperamento alegre: gostava de cantar, tocar violão e acordeão. Gostava também de conversar e botava a mesa do café na varanda de sua casa. Passando um vizinho, prontamente convidava para um cafezinho e um dedinho de prosa, o que às vezes deixava Dona Sebastiana um pouco aborrecida.

 

Venâncio soube aliar sua capacidade intelectual e seus saberes, obtendo reconhecimento pessoal tanto de seus colegas quanto dos cientistas, entrando para a história da instituição, ao ter uma unidade técnico-científica batizada com seu nome. Joaquim Venâncio faleceu no dia 27 de agosto de 1955, em sua casa, vítima de complicações cardíacas. 
Retrato de Joaquim Venancio Fernandes Joaquim Venâncio Fernandes. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor desconhecido.
Ficha de registro funcional de Joaquim Venâncio Fernandes. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de Joaquim Venâncio Fernandes. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz
Ficha de registro funcional de Joaquim Venâncio Fernandes. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de Joaquim Venâncio Fernandes. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

José Barbosa da Cunha

José Barbosa da Cunha ingressou no IOC em 1912 como copeiro, e nesta mesma data foi transferido para servente de laboratório. Assim como Ernani de Moura Caldas, Barbosa da Cunha recebeu um título de nível superior, concedido pelo IOC, para que pudesse atender aos doentes da pandemia de Gripe Espanhola, em 1918. Passou para o cargo de auxiliar de laboratório em 1919 e foi destacado para seguir na Comissão Federal Sanitária no Rio Grande do Norte, regressando depois de seis meses. Trabalhou na seção de Bacteriologia e Imunidade participando de pesquisas na área de microbiologia, especialmente sobre tuberculose, auxiliando o médico Cardoso Fontes, à época chefe da seção.

 

Consta no periódico científico Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, um artigo publicado em 1928 que versa sobre o desenvolvimento do bacilo da tuberculose em meios de cultura artificiais. O artigo é assinado pelos Drs. Cardoso Fontes e J. Barbosa da Cunha que nesta ocasião, já havia sido titulado pelo Instituto. A coautoria revela o reconhecimento do saber do auxiliar, mesmo que este não tenha passado por um processo formal de profissionalização. No entanto, em seus assentamentos funcionais, não há nenhuma menção sobre o título de nível superior ou sobre a publicação do artigo. Em 1928, foi colocado à disposição para trabalhar no Ministério da Agricultura e Comércio.
ambiente de laboratório. Na frente, um homem calvo trabalha em uma mesa em um microscópio. ao fundo, um outro homem está de pé em frente a uma pia com as vidrarias organizadas sob a bancada José Barbosa da Cunha ao fundo e Antonio Cardoso Fontes. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor: J. Pinto.
Ficha de registro funcional de José Barbosa da Cunha. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de José Barbosa da Cunha. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

José Borges

José Borges, trabalhou com Oswaldo Cruz e com Carlos Chagas desde o início do funcionamento dos laboratórios, no prédio principal do Castelo Mourisco. Borges ingressou em Manguinhos como trabalhador das obras. Italiano, naturalizou-se no ano de 1920. Era muito amigo e vizinho de seu conterrâneo Basilio Aor, mestre de obras das construções históricas do Instituto. José Borges não tinha nenhuma escolaridade e não sabia ler nem escrever. No entanto, em 1911, participou da comitiva que foi a Dresden, na Alemanha, onde o Instituto Oswaldo Cruz ganhou um diploma de honra na Exposição Internacional de Higiene e Demografia, pela descoberta da doença de Chagas. Morreu em 1933, de septicemia, ao se autoinocular com material contaminado. 
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ambiente de laboratório. à frente, dois homens examinam algo no microscópio. ao fundo, um outro homem trabalha em uma mesa de bancada com um maçarico José Borges ao fundo. Carlos Chagas ao microscópio e ao seu lado, em pé, Rocha Lima. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Data: 1904. Autor: J.Pinto.
Ficha de registro funcional de José Borges. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de José Borges. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

José Cunha

José Cunha nasceu em Angra dos Reis, no dia 22 de outubro de 1911. Seu pai se chamava Manuel Ferreira da Cunha, português. Sua mãe, Julia Maria Ferreira, brasileira, era descendente de uma família proprietária de escravizados na região de Angra dos Reis. Embora não gostasse que o filho falasse desse passado, ela teve quatro escravizados que permaneceram com ela até o nascimento de José Cunha.

 

Desde pequeno, Cunha teve acesso à educação formal e estudou em uma escola pública que ficava dentro da Quinta da Boa Vista, onde cursou até o sexto ano. Seu pai, que nessa época trabalhava como guarda-jardim também na Quinta da Boa Vista, morreu assassinado a tiros por ladrões. Este acontecimento fez com que José Cunha, ainda criança, tivesse que trabalhar para sustentar sua mãe e seus três irmãos menores, ingressando em uma oficina de encadernação. Mesmo assim, não parou de estudar e transferiu-se para o turno da noite, em uma escola que ficava na rua São Francisco Xavier, na Tijuca. Um de seus professores foi Genésio Pacheco, médico bacteriologista do Instituto Oswaldo Cruz. Genésio decidiu premiar os três melhores alunos de sua classe com um emprego. José Cunha ficou em primeiro lugar e foi trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz, com um salário de 90 mil réis.

 

Em 24 de novembro de 1921, com apenas dez anos, José Cunha foi contratado como servente no laboratório de bacteriologia. Apesar da pouca idade, Cunha aprendeu tudo muito rápido. Em pouco tempo, já sabia preparar qualquer tipo de material, isolava amostras e fazia repique de culturas de tifos e paratifos. Após aproximadamente dois anos no setor, os cientistas acharam melhor transferi-lo de laboratório, pois o risco de contaminação era muito alto. José Cunha foi deslocado para a protozoologia. Neste setor aprendeu muito com outros colegas mais experientes e conheceu o maior de seus amigos, Attilio Borriello. Os dois estavam sempre juntos, colaborando mutuamente nas questões profissionais. Os fortes laços de amizade extrapolaram o âmbito do trabalho e incluíram relações familiares, com amizade entre as esposas e apadrinhamento dos filhos.

 

Para José Cunha, o fato de ser uma criança também facilitava sua relação com os cientistas. Ele tinha algumas liberdades com os pesquisadores que os outros colegas não tinham. Pediu a Carlos Chagas uma casa no Instituto para morar com a família. Chagas negou-lhe a casa, mas no mesmo instante concedeu um aumento de salário de 30 mil réis. Em Manguinhos, as jornadas de trabalho estendiam-se até à noite e aos domingos. Muitas vezes, ainda bem jovem, Cunha esperava a saída da enfermeira do Hospital para que pudesse voltar para casa. Em outras ocasiões, teve que dormir no próprio laboratório, por não ter o dinheiro da passagem. Durante o tempo em que trabalhou no Instituto, José Cunha sempre procurou uma maneira de complementar sua renda, arrumando serviço em diversos lugares. Na adolescência trabalhou como jóquei e tratador de cavalos. Mais velho, tal como outros colegas, após o expediente ia para os laboratórios de análises clínicas que os pesquisadores mantinham fora da instituição.

 

Em 1937, já exercendo o cargo de auxiliar de laboratório, foi para o Instituto de Patologia Experimental do Norte, com sede em Belém, para colher amostras para estudos e pesquisas sobre a leishmaniose visceral americana. Esta viagem foi um acontecimento marcante na vida profissional de José Cunha, porque foi responsável por organizar o laboratório de leishmania em Belém, sob a coordenação de Evandro Chagas. José Cunha gostava muito do trabalho de laboratório, mas guardou certo ressentimento em relação ao Instituto Oswaldo Cruz, mesmo depois de ter ganhado uma medalha de ouro pelos 56 anos dedicados à instituição. Sentia-se preso ao trabalho e não teve oportunidades de continuar seus estudos. Também se ressentia por não ter conseguido uma colocação para nenhum de seus quatro filhos, apesar de ter solicitado a vários pesquisadores em épocas diferentes.

 

Na década de 1970, quando o Instituto Oswaldo Cruz mudou sua natureza jurídica para fundação, José Cunha negou-se a optar pela continuidade de sua carreira dentro do novo modelo e foi posto em disponibilidade, ficando 10 anos sem salário. Era o período da ditadura militar e, de forma concomitante, neste processo, o laboratório de protozoologia em que José Cunha trabalhava foi fechado. Para se sustentar, trabalhou em um laboratório da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Ilha do Fundão. Em 1980, sua esposa, D. Noêmia, escreveu uma carta para o Ministério da Saúde e José Cunha conseguiu, finalmente, sua aposentadoria, mas como não tinha curso formal, teve que passar por uma avaliação para que pudesse ser aposentado como técnico.

 

Terminou sua vida profissional dando aulas de parasitologia, em um curso de medicina, em uma faculdade privada em Nova Iguaçu, mas não se considerava professor, pois não tinha o enquadramento funcional correspondente. Dizia que apenas gostava muito de ensinar e de estar no meio dos jovens. Encerrou suas atividades profissionais em 1993.
cinco pessoas em um acampamento em Belém do Pará Pioneiros do Instituto de Patologia Experimental do Norte. Da direita para esquerda: José Cunha, Maria José Von Paumgartten, Evandro Chagas, Felippe Nery Guimarães e Leônidas Deane. Acervo Tatiana Chagas Memória. Data: 1937. Autor: desconhecido.
Ficha de registro funcional de José Cunha. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de José Cunha. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

José de Vasconcellos

José de Vasconcellos ingressou no Instituto Oswaldo Cruz em 1908 com o cargo de ajudante. Trabalhou em pesquisas na área de parasitologia com o médico Lauro Travassos, mas um acontecimento fez com que passasse a auxiliar Adolpho Lutz: em uma caçada realizada dentro de Manguinhos, Vasconcelos segurou um animal para que seu chefe pudesse dar um tiro certeiro. No entanto, Travassos acabou errando a pontaria, atirando no pé de José de Vasconcellos. Seu pé foi dilacerado, mas, mesmo assim, continuou trabalhando e morando no IOC, atuando nas pesquisas entomológicas com Lutz.

 

Participou de algumas expedições em 1912 e 1918, viajando por diversas regiões do Brasil e da América Latina. Foi colega de laboratório de Joaquim Venâncio. Vasconcelos morou com a família na mesma casa em que moravam os irmãos Borriello, onde hoje funciona o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos – Biomanguinhos. As circunstâncias dessa mudança de chefia expressam as contradições das relações de trabalho no IOC, o caráter servil do trabalho subalterno em Manguinhos e a brutalidade dos cientistas. José de Vasconcelos faleceu em 04 de fevereiro de 1933.
ambiente de laboratório. um homem encostado em uma bancada junto à vidraria José de Vasconcellos. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Sem data. Autor: J. Pinto.
Ficha de registro funcional de José de Vasconcellos. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de José de Vasconcellos. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

Mario da Silva Ventel

Mario da Silva Ventel ingressou em Manguinhos em 1918 para prestar serviços na seção de vidros. Em 1919, passou a servente de laboratório. Foi um auxiliar muito versátil, exímio anatomista e também microfotógrafo, aprendendo com J. Pinto as técnicas de microfotografia. Participou de muitas expedições na década de 1920, acompanhando os cientistas Lauro Travassos e Olympio da Fonseca Filho. Passou algumas temporadas na Fazenda Japuíba, de propriedade de Lauro Travassos, que também se constituiu em um posto de estudos do IOC. Seu trabalho consistia em coletar material elmintológico, entomológico e de protozoologia, através de autópsia em animais encontrados na região.

 

Em 1922, participou de uma expedição científica ao estado do Mato Grosso, na zona do Pantanal, nas margens dos rios São Lourenço e Cuiabá, acompanhando os cientistas Lauro Travassos, Cesar Pinto e Julio Muniz. Em 1924, acompanhou Olympio da Fonseca, médico do IOC, a uma expedição pelo Oriente da Bolívia, de Porto Esperança a São José de Chiquitos, para prestar assistência médica e profilaxia à Comissão Ferroviária Transcontinental. Fazia todo o serviço de necrópsia com muita competência. No entanto, viveu sempre com muitas dificuldades financeiras. Casou bem mais velho e teve dois filhos, que criou sozinho após se separar de sua esposa.

Narcizo Inácio de Araújo

Narcizo Inácio de Araújo nasceu em 13 de fevereiro de 1893. Em seus registros funcionais consta que ingressou no IOC em 01 de fevereiro de 1910, contratado como servente. Em 1919 foi nomeado como servente de 1ª classe. Auxiliar de laboratório do Dr. Henrique Aragão, em 1921 viajou para São Paulo acompanhando o pesquisador por 12 dias, para estudos sobre a peste bubônica. Narcizo era o melhor amigo de Ernani de Moura Caldas e compartilhavam o mesmo “dormitório” no sótão do prédio do Pavilhão da Peste (Pavilhão do Relógio).

 

No ano de 1922, foi posto à disposição do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, para servir na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, atual Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Em 1924 foi nomeado preparador repetidor da 2ª cadeira da Escola Superior de Agricultura, sendo exonerado do cargo de servente que ocupava no IOC.

 

A amizade entre Ernani de Moura Caldas e Narcizo de Araújo durou por toda a vida. Narcizo casou-se com Eurídice França, irmã mais velha de Dulce, esposa de Ernani. Logo após os casamentos, continuaram vizinhos e moravam com suas famílias na mesma rua, no bairro do Encantado.
Narcizo de Araújo Narcizo Inácio de Araújo. Acervo pessoal de Teresa Trevino. Sem data. Autor desconhecido.
Ficha de registo funcional de Narcizo de Araújo. Documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de Narcizo Inácio de Araújo. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

Oldemar Coelho de Almeida

Oldemar Coelho de Almeida ingressou em 1911 no IOC. Em 1915 pediu exoneração e foi readmitido em 1919, como servente de 3ª classe. Durante o período em que ficou afastado do Instituto, trabalhou por um ano, de 1917 a 1918, na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil (atual UFRJ). Enquanto esteve em Manguinhos, ficou lotado na seção de protozoologia, chefiada pelo médico Julio Muniz. Gostava de fazer experimentos por conta própria, o que fazia escondido dos cientistas.

 

Certa vez, criou um medicamento semelhante a um bacteriófago produzido no Instituto. Tentava também produzir antígenos. Depois, documentava tudo e mandava para análise. Era um auxiliar reconhecido por seus talentos e gostava de ensinar aos colegas mais jovens. Quando José Cunha chegou menino ao Instituto, Oldemar o ensinou muito. Afetuoso, levava o menino para sua casa para brincar com sua filha, da mesma idade. Em 1913, Oldemar foi punido e recebeu uma multa de um dia de desconto, por ter feito uso do toalete destinado a seus superiores.
Ficha de registro funcional de Oldemar Coelho de Almeida Folha do Livro de Registros funcionais de Oldemar Coelho de Almeida. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz

Raul de Avelar

Raul de Avelar ingressou em Manguinhos em 1919, contratado como administrador do Hospital de Lassance. Em seus registros constam as notações das diversas vezes que foi e voltou da estação para colher material, acompanhar doentes, trazer os doentes para Manguinhos. Antes de ser admitido no Instituto trabalhou, de 1904 a 1910, no Serviço de Inspetoria de Profilaxia da Febre Amarela do Rio de Janeiro e de Niterói, atuando como servente, passando a capataz, a guarda de 1ª classe, até alcançar o cargo de chefe de turma interino. De 1910 a 1911 foi designado em comissão ao estado do Pará.
Raul Avelar, à direita. Hospital Regional de Lassance. Lassance, MG. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.Data: 1910. Autor: J. Pinto Raul Avelar, à direita. Hospital Regional de Lassance. Lassance, MG. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.Data: 1910. Autor: J. Pinto
Profilaxia da Febre Amarela: turma de expurgo. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.Data: 1905. Autor desconhecido. Profilaxia da Febre Amarela: turma de expurgo. Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.Data: 1905. Autor desconhecido.

Rômulo Mônico dos Santos

Rômulo Mônico dos Santos trabalhava na seção de bacteriologia e era responsável por manter a coleção de culturas de bactérias. Seu trabalho consistia em examinar as culturas, verificar se estavam ou não contaminadas, repicar para outros meios de cultura e assim conservar a coleção. Rômulo ingressou no IOC em 1914 e morava nos terrenos da instituição. Foi diretor do Manguinhos Futebol Clube nos anos de 1922 e 1923. Em 1923 foi multado após ter sido flagrado viajando, quando alegou motivo de doença para justificar sua ausência do trabalho. Ele havia solicitado uma licença para este período, mas a licença lhe foi negada. Em 1925, foi suspenso por 10 dias, por não ter observado a ordem da zeladoria, de apresentação regulamentar ao serviço.
Ficha de registro funcional de Rômulo Mônico dos Santos. documento manuscrito Folha do Livro de Registros funcionais de Romulo Monico dos Santos. Fundo IOC. Acervo COC/Fiocruz